Por Joselita Nepomuceno Borba[1]
No momento em que aceitei convite para participar do evento que marcaria os cinco primeiros anos da Reforma Trabalhista, promovido pela Academia Brasileira de Direito do Trabalho (ABDT), sob a organização dos Diretores Confrades Antônio Carlos Aguiar e José de Alencar e comando do Presidente Confrade Luiz Carlos Robortella, de pronto, veio à lembrança o comando do § 2º do art. 8º da CLT, acrescido pela Lei n. 13.467/2017, que instituiu a Reforma Trabalhista.
Tal comando dispõe que “súmulas e outros enunciados de jurisprudência editados pelo Tribunal Superior do Trabalho e pelos Tribunais Regionais do Trabalho não poderão restringir direitos legalmente previstos nem criar obrigações que não estejam previstas em lei”.
O tema é complexo e altamente controvertido, a potencializar o risco da síntese que se intenta. Mesmo assim, em breves palavras, serão abordadas noções elementares para uma compreensão geral do que fora exposto na sala virtual do evento, para fins de registro nos Anais do Seminário, como solicitado pelos ilustres Coordenadores.
O primeiro passo para o enfrentamento da vedação contida no citado § 2º do art. 8º da CLT é rememorar as bases teóricas do positivismo jurídico e da manutenção da integralidade do sistema a partir de sua operacionalidade. [2]
O que é o Direito e como foi o centro de atenção de Hans Kelsen[3], que culminou com sua autonomia frente a outras ciências? O teórico do positivismo jurídico, para tanto, expurgou do Direito todo e qualquer aspecto ético, moral, religioso, político e sociológico, de forma que ele se apresenta de modo puro.
Essa base – Teoria pura do direito – já indica o isolamento, advindo de tal construção uma dogmática para o direito positivo e formal, com estrutura operativa. Essa operatividade se dá com base em uma “norma fundamental”.
A norma é algo pressuposto, que antecede a própria ordem, conferindo-lhe sentido. Essa ordem, na dinâmica teórica, posiciona-se abaixo de uma norma fundamental, plena, completa, coerente, válida e aplicável por todos os tribunais.
O Direito, portanto, é concebido como um sistema de normas que regula a conduta humana, onde uma norma sempre deposita seu fundamento de validade em outra norma de nível superior e, assim, sucessivamente, até o patamar da norma fundamental, que põe fim ao escalonamento.
Nesse dinamismo, o direito positivo é imposto por decisão de autoridade, podendo ser produzido tanto pelo legislativo (lei), quanto pelo judiciário (sentença), observando-se sempre, rigorosamente, a lei fundamental.
Direito é autônomo, positivo, formal e rígido. Essa, a base do nosso sistema jurídico. Exatamente pelas características do formalismo e da rigidez, na atualidade, não se mostra mais suficiente ao fim a que se propôs.
Certamente, a sociedade, conforme precisa observação de Raffaele de Giorgi[4], não se conclui; não se acaba. Ao revés, na sua incontida dinâmica se reproduz. A cada dia a vida e os fatos se tornam mais complexos e, na maioria, de lenta apreensão pelo sistema legislativo.
Nesse cenário, emoldura-se uma sociedade mundial dinâmica e imersa numa enorme expansão da complexidade e da contingência do processo decisório a exigir, de pronto, decisões não rotineiras e com consequências imprevisíveis[5]. Alie-se a isso, ainda, a possibilidade de interferência recíproca dos sistemas político, econômico e jurídico, que, embora particulares e funcionalmente isolados, podem excepcionalmente trocar prestações.
Frente a essa realidade, a comunidade científica não tem poupado esforços em busca de resposta, não mais para o que é o Direito, mas para qual a sua função.
Luhmann[6], então, imaginou fazer algo similar ao que já existia (direito positivo autônomo), mas de forma diferente. Seu aporte se assentou na premissa segundo a qual seria necessário buscar a transparência dos instrumentos de estudo e teorizar a partir da observação, em que o mundo fosse visto também pelo prisma do observador: descrição da sociedade que se expõe à observação e à descrição.
A partir da observação, da descrição e da diferenciação, o sociólogo constrói a “Teoria dos sistemas”, fazendo distinção entre o todo e a parte, entre sistema e ambiente. Toma, ainda, por empréstimo da biologia, o conceito de autorreprodução (autopoiésis), como mecanismo para se alcançar a unidade.
A concepção dessa teoria é engenhosa e altamente complexa, de difícil aproximação. Não fossem as características específicas e o caminho peculiar do aporte teórico, as dificuldades se elevam em decorrência da escassez bibliográfica e do elevado número de conceitos utilizados em sua articulação interna.
Os conceitos que justificam a construção teórica, embora existentes – como: função, programa, código, sistema, sentido, contingencia, complexidade, entre tantos outros – foram aprimorados, reelaborados e interligados, tanto que o próprio teórico elaborou um Glossário[7] contendo o sentido em que aqueles conceitos existentes foram empregados. Daí não se poder tomar na acepção comum tais conceitos. Impõe-se releitura deles à luz do “glossário”, de forma que, sem tal recurso, difícil se chegaria, sem riscos de desvios, à gênese da tese.
Outra dificuldade decorre do fato de o entendimento sobre o aporte teórico não poder ser formulado simplesmente a partir de um trabalho, mas do conjunto da obra do sociólogo. Ele, em cada uma de suas obras (salvo raras exceções) elabora uma distinção em relação a um programa especifico, pressupondo, contudo, o conjunto da teoria.
Mas, afinal, qual a arquitetura operativa da teoria e sua imbricação com possível ativismo judicial, de que cuida o § 2º do art. 8º da CLT?
Para enfrentar essa correlação, recorre-se à precedente tentativa de aproximação do aporte teórico[8], lembrando que o ponto de partida da observação de Luhmann é o todo (plano terrestre), dele distinguindo, sob a perspectiva da observação, a diferenciação entre seres inanimados e animados.
Estes, no ambiente (bio), caracterizam-se pela capacidade de produzir e reproduzir a partir de si memos os elementos que o constituem e, assim, construir sua própria unidade ou de autorreproduzir-se, de onde advém o conceito de autopoiesis, colhido da obra de Humberto Maturana e Francisco Varela.
Luhmann, a partir da teoria daqueles biólogos chilenos, observou que o sistema social, assim como a “máquina humana”, têm a mesma capacidade de, pela autorreprodução, chegar à unidade. E assim, observando e diferenciando, distinguiu do todo (animado) os sistemas: psíquico (consciência), social (comunicação) e biológico (vida), cada qual com operações próprias e que os distinguem. Operações particularizadas de cada subsistema que, no interior deste, levam a imensuráveis possibilidades e que, num movimento reverso, levam à necessidade de reduzi-las. O imperativo de reduzir incontáveis possibilidades reclama, por sua vez, premente necessidade de uma nova linguagem para a ciência social.
Desse pressuposto (comunicação), Luhmann extrai a cientificidade do direito, deslocando-a, ao menos em parte, do monopólio da Filosofia para o campo da Sociologia, de forma que, graças à miríade de comunicações, o sistema se autorreproduz.
O ponto de partida da teoria, portanto, é a distinção pela diferenciação, a exigir nova linguagem para as ciências sociais.
Se é assim, mediante operações próprias, os sistemas se distinguem uns dos outros: o sistema psíquico reproduz consciência (consciência do que se faz); o sistema social reproduz comunicação, que envolve ato de comunicar + informação + compreensão (comunicação gera comunicação mediante comunicação) e o sistema biológico se autorreproduz (célula que produz célula por meio de célula).
Na arquitetura teórica de Luhmann, o sistema social (sociedade) está acoplado a outros: psíquico e biológico. O que o distingue é a linguagem especializada. Equivale dizer que o critério básico é a especialização da comunicação. Cada sistema tem sua linguagem: o jurídico (direito positivo), o econômico (economia de mercado) e o político (democracia). Estes são parciais do sistema social, identificados a partir da especialização da comunicação social, no interior do sistema social.
Aspecto também da maior relevância é a técnica argumentativa. Ela é codificada, vale dizer, a linguagem comunicativa se dá por meio de código. Cada sistema tem seu código. O do sistema jurídico é lícito/ilícito, direito/não direito. Exatamente esse código que, juntamente com a função jurídica, vai fechar o sistema jurídico. Da mesma forma, o sistema político gira em torno do binômio comunicativo: governo/oposição, minoria/maioria, enquanto o sistema econômico se organiza em torno do código ter/não ter, possuir/não possuir. Com essa técnica argumentativa codificada, os sistemas parciais se fecham.
E assim, do ponto de vista do sistema político, a complexidade e o excesso de possibilidades de escolha conduzem à democracia; do ponto de vista do sistema econômico, leva à economia de mercado e, do ponto de vista jurídico, leva à ideia de direito, fruto de decisão – direito positivo.
Cada sistema, portanto, fecha-se com seu código e sua função. Mas, embora fechado, ele pode sofrer irritações ou experimentar problemas ou perturbações advindas de um outro sistema. Cognitivamente eles se apercebem.
Isso significa que um sistema não ignora o outro. São capazes de auto sensibilizarem-se. O que não se admite é um abandonar seu código para decidir com o código do outro, sob pena de invasão de espaço alheio.
Ilustrativamente, lembra-se aqui da veloz mudança no modelo produtivo e consequentemente na forma de prestar o trabalho por meio do processo de terceirização. Essa situação concreta, como tantas que se apresentam na dinâmica das relações de trabalho, sem lei que a regulamente, como foi o caso do trabalho por interposta pessoa, antes da Reforma Trabalhista de 2017, empurram incertezas e controvérsias, aos milhares, para a Justiça do Trabalho, que, sem alternativa, teve prestar a jurisdição.
A irritação ou a perturbação entre sistemas (econômico: nova realidade no mundo do trabalho; político: inércia legislativa e, jurídico: dizer o direito sem regulamento específico) é visível, advindo, como solução possível, a consolidação da jurisprudência.
Situação como a que se apresenta, certamente, levou à construção da teoria dos Sistemas em que Luhmann, na articulação interna da teoria, lidou com conceitos já existentes (código, função, programa, autopoiésis, acoplamento estrutural, complexidade, sistema, comunicação, sociedade etc), aprimorando-os a fim de compreender, em meio à multiplicidade de relações recíprocas, a operacionalidade fechada dos sistemas (economia/política/direito), mas cognitivamente abertos.
Quando esses sistemas operacionalmente fechados com sua linguagem codificada própria sofrem irritações ou perturbações, devem responder com o seu código. Este código nunca pode ser ultrapassado, ignorado ou desrespeitado, visto que se isso vier a ocorrer, o sistema se corrompe. Ou seja, o jurídico responde a possível irritação ou perturbação com o seu código (lícito/ilícito; direito/não direito), jamais com o código do sistema político (minoria/maioria), ou econômico (ter/não ter), sob pena de configurar judicialização da política ou a politização da justiça ou ativismo judicial.
O próprio sistema jurídico positivo, por seu estatuto maior (norma fundamental), reparte os Poderes, independentes e harmônicos entre si, define o ato próprio de cada um e delega-lhes competências. Não é por outro motivo que, sistematicamente, o Supremo Tribunal Federal, em ação direta de inconstitucionalidade por omissão, deixa de suprir a falta do Poder legislador, notificando-o para agir, ao invés de ele mesmo, Poder jurisdicional, atuar com código que não é seu, suprindo falta ou a omissão legislativa.
Entretanto, não se pode perder de vista que o Direito advém de construção social, que atende a contingência e conjuntura do tempo e do espaço em que, pela correlação de forças políticas contrapostas na sociedade, se institucionalizou. Não bastasse, resulta da ação mais significativa do homem[9], qual seja, da palavra, do discurso, da comunicação.
Direito é, portanto, fruto da ação do homem e opera no mundo do dever ser. E assim, concebido como conjunto de normas sancionadoras emanadas do Estado, fruto de processo sistemático e formal, sua aplicação fica a cargo de um núcleo duro.
Nestes aspectos, a visão de Hans Kelsen e a percepção de Niklas Luhmann convergem: o direito é positivo e deve ser aplicado pelo tribunal. Todavia, o sociólogo avança para, com base num sistema ambiente, reconhecer que o sistema jurídico não é imune às provocações ou interferências dos outros sistemas que harmonicamente com ele convive, mas que, apesar disso, mantém-se íntegro pela atuação alicerçada em seu código. Se a base operacional não é observada o sistema se corrompe.
Assentadas tais premissas teóricas, quando a atenção se volta para o sistema jurídico nacional, percebe-se claramente que a Lei n. 13.467/2017, que há cinco anos instituiu a Reforma Trabalhista, vedou o ativismo judicial, visto que consta do § 2º do art. 8º da CLT, acrescido por referida lei, que os tribunais não podem restringir direitos legalmente previstos nem criar obrigações que não estejam previstas em lei.
A correlação de tal enunciado com a teoria pura do Direito, bem como com a dos Sistemas, é evidente, na medida em que explicita que, sem lei, não se retira e nem se concede direito.
Corporifica o comando normativo da Reforma Trabalhista uma regra geral, de cuja mens legis ressai, com clareza, que o sistema jurídico (positivo autônomo) deve se manter íntegro, por operar unicamente seu código base (operatividade do sistema), apesar da possibilidade de irritações e perturbações em relação a outros sistemas.
Não tratou a lei, por óbvio, de casuística nem de reação pontual a ativismo judicial na Justiça do Trabalho. Certo que, não raro, contundentes reações à jurisprudência trabalhista são registradas, como ocorre com o entendimento uniformizado acerca da terceirização (Súmula n. 331 do TST), como já referido.
No entanto, há de se distinguir entre ativismo e imprescindível prestação jurisdicional, notadamente em virtude da premissa base do positivismo jurídico segundo a qual o sistema é coerente e completo. Em função deste (completude), diante da lacuna da lei, o tribunal faz a integração (como na hipótese lembrada: terceirização), o que se mostra diferente de o tribunal vir a decidir com base em critério (código) político ou econômico.
Primavera de 2022
[1] Membro da Academia Brasileira de Direito do Trabalho (ABDT), titular da Cadeira n. 08
[2] O direito da sociedade. (Tradução provisória para o espanhol de Javier Torres Nafarrate). México: Universidad Iberoamericana, 2002
[3] Teoria pura do direito. 5. ed. Tradução de João Baptista Machado. Coimbra: Armenio Amado, 1979.
[4] Apresentação da obra Direito na Sociedade Complexa. Celso Campilongo. São Paulo: Max Limonad, 2011.
[5] Nesse sentido, conf. Celso Campilongo. Política, sistema jurídico e decisão judicial. São Paulo: Max Limonad, 2002; Direito e democracia. 2ª ed. São Paulo: Max Limonad, 2000; O direito na sociedade complexa. São Paulo: Max Limonad. 2000.
[6] Sobre a teoria conf. Raffaele de Giorgi. Luhmann e a teoria jurídica dos antos 70. in Campilongo, Celso. O direito na sociedade complexa; Luhmann e o direito autopoiéico. in ______. Direito e democracia; Raffaele de Giorge. Direito, Tempo e Memória. Trad. de Guilherme Leite Gonçalves.São Paulo: Quartier Latin. 2006.
[7] Sobre glossário: Giancarlo Corsi; Elena Esposito; Cláudio Baraldi. Glossário sobre a teoria social de Niklas Luhmann. (Tradução de Miguel Romero Peréz e Carlos Villalobos, sob a coordenação de Javier Torres Nafarrate). México: Universidad Iberoamericana, 1996.
[8] A tentativa de aproximação da teoria do positivismo jurídico resultou no registro da arquitetura teórica das teorias de Kelsen e Luhmann, ainda que de forma sucinta, em nosso título Efetividade da tutela coletiva (São Paulo: LTr. 2008).
[9] Cf.Hannah Arendt. A condição humana. (Trad. de Roberto Raposo) 10. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005.