Evaristo de Moraes

EVARISTO DE MORAES

Albino Lima

Foi o meu saudoso mestre de Direito Industrial Joaquim Pimenta que influiu para que me interessasse em conhecer a obra e a personalidade do Patrono da Cadeira n. 30 da Academia Brasileira de Letras Jurídicas, o grande idealista que foi Antônio Evaristo de Moraes. Tinha razão Joaquim Pimenta, quando recomendava aos seus alunos do 5º ano do Curso de Bacharelado da Faculdade Nacional de Direito, nos idos de 1943, que sempre consultassem a obra clássica de Evaristo intitulada, despretensiosamente, “Apontamentos de Direito Operário”.

Conforme não me canso de repetir, Evaristo de Moraes – que desempenhou o elevado cargo de Consultor Jurídico do Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio, a convite de Lindolfo Collor – já manifestava, no limiar deste século, sua preocupação com os problemas sociais, notadamente com as crianças brasileiras, que, por motivos econômicos, eram compelidas a trabalhar, e, incapazes ainda, eram vilmente exploradas, sujeitando-se a um mero adestramento, por culpa da inconsistente legislação trabalhista daquele tempo.

Em toda a sua vida, o nosso Patrono, com pertinácia, buscou defender os trabalhadores, principalmente as mulheres e os menores.

Antônio Evaristo de Moraes, que se assinava Evaristo de Moraes e era assim conhecido, filho de Basílio de Moraes e de Elisa de Moraes, nasceu na cidade do Rio de Janeiro, capital da República, na rua Larga de São Joaquim, hoje avenida Marechal Floriano, a 26 de outubro de 1871, dia de São Evaristo, daí o seu nome. Morreu na mesma cidade – onde praticamente passou toda a sua existência, nunca tendo viajado para o exterior – a 30 de junho de 1939, com 68 anos incompletos.

Aprendeu a ler com a própria mãe, nos Evangelhos, o que haveria de marcá-lo para o resto da vida. Em 1924, o grande brasileiro, quando preso no regime de estado de sítio que foi decretado pelo governo Bernardes, teve oportunidade de escrever num pequeno artigo no Correio da Manhã, sob o título Minha Mãe:

“Sempre que uma dor moral me punge, uma injustiça me fere, uma perfídia me apunhala, eu penso em ti, penso nos teus ensinamentos e nos teus exemplos. Recolho-me na tua lembrança como num reduto de supremo amparo, como num asilo de paz e mansidão. Recordo os teus primeiros influxos na minha alma de criança e os traços da tua influência em toda a minha vida – quando os olhos do corpo ainda te contemplavam e depois que só te vejo com os olhos da imaginação. Que grande e sutilíssima psicóloga tu foste, ao ensinar-me a ler nos Evangelhos.”

Obteve os preparatórios de grau médio, como aluno gratuito, no externato do Colégio São Bento, mantido pelos frades beneditinos, de 1883 a 1886. Ali teve como colegas, entre outros que se destacariam no futuro, Alberto Rangel, Ataliba Lara, Milcíades Mário de Sá Freire, Antônio Moitinho Dória, Epaminondas de Carvalho, Mendes Tavares (que haveria de ser seu cliente), Fernando Vieira Ferreira.

Nos anos de 1887 a 1889, vamos encontrá-lo na condição de professor do próprio Colégio São Bento, como auxiliar de Português, Geografia e História. Nessa mesma época, praticou jornalismo como repórter e noticiarista de vários periódicos, destacando-se a Gazeta Nacional, criada em 1887, onde teve ensejo se entrar em contato com Saldanha Marinho, Ubaldino do Amaral, Aristides Lobo, Matias de Carvalho, fazendo, contudo, de Silva Jardim o seu chefe político na propaganda da República. Frequentava os clubes literários da cidade, vindo a conhecer os figurões da época, ao mesmo tempo em que exercitava o que mais adiante viria ele próprio a chamar de “destemperos oratórios”.

Manteve, então, estreito contato com Carlos de Laet, monarquista ferrenho, de quem obteve esta declaração que muito lhe haveria de valer na vida prática: “Atesto que o Sr. Antônio Evaristo de Moraes exibiu boas provas dos seus conhecimentos de gramática portuguesa em exame para a matrícula nos cursos superiores do Império; e que, outrossim, já tive ocasião de apreciar quanto se aplica ao estudo do idioma nacional pela leitura de vários escritos do mesmo senhor, que considero apto para reger alguma classe de português”.

Viveu intensamente aquele momento de mudança social e política entre nós. Tomou parte na Abolição e na República. Lançou-se inteiro no Encilhamento, naquela inflação desenfreada, deixando-se envolver no verdadeiro delírio de papel-moeda da época. Ganhou muito dinheiro e, pensando que enriquecera, encontrou-se logo depois – por seus atos de irrestrita bondade – sem um vintém.

No ano de 1894 ocorreriam, para ele, dois fatos significativos: seu primeiro casamento e a estreia no Júri. É com este último acontecimento que inicia suas Reminiscências de um Rábula Criminalista (1922), servindo o tema de objeto para uma das crônicas de Humberto de Campos no número de A Maçã de 7 de julho de 1923, ao lado de magnífica caricatura sua de autoria de Andrés Guevara. A crônica foi reproduzida na 2ª série dos Perfís daquele Acadêmico.

Começou a produzir cedo, com estudos e monografias de Direito Penal, desde 1894. Interessava-se por todos os assuntos importantes dessa década final do século, debatendo-os e analisando-os em pequenos opúsculos. O novo século vai encontrá-lo como Diretor e Redator-Chefe do Boletim Criminal Brasileiro, do qual chegou a publicar dezenas de números, nos quais discutia e comentava aspectos inerentes às obras, nacionais e estrangeiras, da especialidade.

Formado consoante os preceitos da doutrina Cristã, embora agnóstico por convicção, desde logo sentiu a miséria do seu tempo e da sua cidade. O exercício da advocacia criminal facilmente o conduziu às chagas sociais e aos dramas nascidos do capitalismo incipiente entre nós.

O Código Penal era uma espécie de índice geral ou agenda dos sofrimentos humanos, sempre muito mais frequentado pelos menos favorecidos. Já em 1890-1992, seu nome aparecia como signatário do Partido Operário, de orientação sindicalista, que timidamente ia-se constituindo, nos primeiros dias da República, em meio a lutas e desentendimentos de seus próprios fundadores: França e Silva, tenente Augusto Vinhais e Gustavo Lacerda.

Célebre pela eloquência e pelo talento, logo ficou conhecido e disputado no Fórum, tornando-se dentro em pouco uma figura popular na sua cidade natal e no país. Advogado das questões mais momentosas da primeira década do século, fundador das primeiras associações de classe, nelas chegando a inscrever-se como membro efetivo, jornalista, escritor, viveu plena e resolutamente a sua época, não lhe sendo estranho nenhum problema social do tempo. Meteu a mão em cheio na vida, como aconselhava Goethe.

Já em 1897 fora preso por haver defendido o irmão de Nilo Peçanha, adversário do governo. Datam daí o seu conhecimento e a sua grande admiração por esse político fluminense. Fanático apreciador de Ruy Barbosa, mandava, juntamente com Irineu Marinho, buscar pela Garnier os mesmos livros que ali haviam sido encomendados pelo grande jurista baiano. Alistou-se, inclusive, na campanha civilista, e com o seu ídolo viajou pelo interior do Brasil.

Somente em 1916 deixou de ser rábula, bacharelando-se em Direito pela Teixeirinha, como era conhecida a Faculdade de Direito Teixeira de Freitas, de Niterói. Foi orador da formatura de sua turma, a primeira a diplomar-se naquela Escola, “nascida da feliz iniciativa de Abílio Borges, o grande semeador de ideias, o sempre risonho sonhador do viver para outrem”, nas suas próprias palavras. Por força da Lei Rivadávia Corrêa, validou o diploma com novos exames na Faculdade de Direito da Capital Federal, em 1918.

Advogado nas causas mais relevantes do seu tempo, bastando destacar duas delas, sempre fiel à campanha civilista de Ruy e à generosidade do seu coração: acusador dos matadores dos estudantes na denominada “primavera de sangue”, chacina ocorrida no Largo de São Francisco a 22 de setembro de 1909, em cujo corpo de jurados serviram o escritor Lima Barreto e o professor Bruno Lobo, ainda muito jovem e que haveria de ser seu amigo pelo resto da vida; e defensor, na “revolta da chibata”, de João Cândido e seus companheiros, juntamente com Jerônimo de Carvalho.

Nessa mesma década, de 1910 a 1920, foi a São Paulo defender o anarquista Eugênio Leuenroth, preso e maltratado pela polícia por haver tomado parte no movimento grevista de 1917.

Com o fim da Primeira Guerra Mundial, alinhou-se entre os que fundaram o movimento Clarté, à maneira de Henri Barbusse na França. Mais uma vez Evaristo fica com Ruy e ajuda a elaborar a conferência de março de 1919 no Teatro Lírico sobre a questão social. Disso deixará testemunho por escrito, em documento posterior no qual lembra o nome de seus colegas de colaboração. Vale a pena a leitura de trecho desse depoimento, por seu inegável valor histórico:

“Bem recordo do espanto manifestado pelo culto Amaro Cavalcanti, quando Prefeito, ao sustentar eu a legitimidade da legislação protetora dos operários… E desse espanto – por que não dizê-lo? – nem escapava a genialidade de Ruy Barbosa, não obstante a conferência do Teatro Lírico, a mais fraca dentre as que proferiu durante a campanha político-eleitoral de 1919. Fenômeno estranhável, que proponho ao estudo do biógrafo definitivo do incomparável brasileiro: ele, que fora, num caminhar de linha reta, sem desfalecimentos, estrênuo e generoso batalhador em prol da libertação dos escravos, nunca se preocupara, sequer de realce, com a sorte dos operários, tantas vezes sacrificados à ganância dos patrões e cuja liberdade econômica exprime mera ilusão. Frequentemente acode-me ao espírito a lembrança da longa conversa em que eu, o saudoso José Agostinho dos Reis e Caio Monteiro de Barros ministramos a ele os dados concretos, os comprovantes que deveriam servir para feitura da conferência vinte e quatro horas depois. Ele pasmava diante dos quadros, que lhe apresentávamos, de misérias, de sofrimentos, vexames e explorações a que estão sujeitas algumas classes trabalhistas, parecendo-lhe incomportável a situação por nós descrita. E Deus sabe quanto e quanto lhe custou, abandonando os princípios de seu velho Liberalismo Econômico, sugerir, de público, providências legislativas, de cunho intervencionista.”

Advogando, escrevendo em quase todos os jornais da sua cidade e em algumas revistas científicas e literárias, traduzindo, inclusive, uma peça teatral de Brieux, participou de movimentos democratas, de campanhas pela infância desvalida, de ligas antialcoólicas, sem esquecer a Liga Maçônica, da qual foi membro desde a mocidade.

Já em 1905 colaborava em Os Anais, de Domingos Olímpio, ao lado de José Veríssimo, Sílvio Romero, Coelho Neto, Rocha Pombo, Gonzaga Duque e muitos outros. Na década de 1910, voltou a editar e a dirigir uma revista jurídica, Revista de Direito e Processo Penal, juntamente com Gregório Garcia Seabra Júnior e Januário d’Assunção Osório. Nos anos 1920, incluiu-se entre os colaboradores de O Mundo Literário, de Agripino Grieco e Théo Filho, ao mesmo tempo em que, ao lado de Alfredo Horcades, dirigia e fazia publicar a revista Nação Brasileira.

Nessa época, juntou-se aos fundadores do Partido Socialista Brasileiro, por cuja legenda se candidatara a deputado federal na Capital da República, sem lograr êxito. Arguira, em pedido de habeas corpus perante o Supremo Tribunal Federal, a inconstitucionalidade da Lei n. 2.741, de 8 de janeiro de 1913, no ano de 1918, contra a expulsão de trabalhadores estrangeiros há muito domiciliados no Brasil, alguns com mulher e filhos brasileiros. No ano seguinte, em dois acórdãos, reconheceu aquela Corte o vício inquinado.

Regozijou-se com a promulgação da Lei n. 3.742, de 15 de janeiro de 1919, regulando os acidentes do trabalho, mas logo endereçou-lhe uma série de críticas, mostrando a impossibilidade de sua real eficácia, além do atraso em relação ao tratamento que mereceu o mesmo assunto em outros países. Em verdade, a lei fora votada às pressas na Câmara, depois de longa demora, pelo sobressalto resultante do movimento anarquista ocorrido, na cidade do Rio de Janeiro, em fins de 1918.

O livro de Evaristo de Moraes intitulado Os acidentes do trabalho e sua reparação (Rio de Janeiro, 1919) viria a ser abundantemente citado, como referência doutrinária, na Comissão de Legislação Social, criada exatamente no dia da agitação, 18 de novembro de 1918, pelo deputado Carlos Penafiel, servindo de lastro argumentativo para a revisão e reforma da lei, que, todavia, somente aconteceu em 1934, no Governo Provisório, ex vi do Decreto n. 24.637, de 10 de junho daquele ano.

Foi preso durante o governo de Artur Bernardes por ter apoiado a candidatura oposicionista de Nilo Peçanha, cuja campanha ficou conhecida como movimento de Revolução Republicana. Em 1929, aderiu à Aliança Liberal, vendo finalmente vitoriosa a revolução de outubro de 1930. Na tese elaborada para o 4º Congresso Americano da Criança reunido em Santiago do Chile, escrevia:

“Mais dia, menos dia, terá, portanto, o Brasil de dar satisfação ao seu compromisso, não ficando aquém de outros países, inclusive o Japão, que, ultimamente, refundiu a sua legislação trabalhista para se pôr de acordo com o pactuado em Versalhes e confirmado em Washington”.

Embora popular, popularíssimo na cidade que o viu nascer – a ponto de levar uma hora para percorrer a distância de uma esquina a outra, tal o número de pessoas que o reconheciam e com as quais era obrigado a trocar algumas palavras – Evaristo de Moraes não se elegeu deputado em 1929, mais uma vez. Isso, talvez, porque não adotasse as artimanhas político-eleitorais hoje tão comuns. Notórios eram os seus atos de caridade pública, por meio de entidades mantenedoras da infância abandonada e assistência a todo tipo de carentes. Seu Natal era tradicionalmente dividido com os humildes, efetuando a distribuição de víveres e brinquedos.

Consumada a Revolução de 1930, veio a ocupar o cargo de Consultor Jurídico do Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio, que se criara a 26 de novembro daquele ano. Com ele, sob a direção de um ministro jovem, inteligente e bem intencionado a favor das reformas sociais, encontravam-se os antigos combatentes da véspera em prol do mesmo ideal: Joaquim Pimenta, Agripino Nazareth, Deodato Maia, todos com inumeráveis serviços prestados ao advento de uma legislação do trabalho realmente progressista, à maneira do que já se vinha fazendo em outros países dos quais importávamos a cultura literária e científica.

Ingressou, com Lindolfo Collor no Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio em 1930 e com ele saiu em 1932. De nada adiantou o apelo, formulado por carta, do ministro interino Afrânio de Melo Franco, para que continuasse no cargo, a fim de ajudá-lo a arrumar a casa nos primeiros meses. Indicou para substituí-lo o nome do jurista, sociólogo e historiador, seu amigo, Oliveira Viana, que iria permanecer exercendo as funções de Consultor Jurídico até 1940.

Com o Estado Novo, afastou-se de Getúlio Vargas, que dele não se esqueceu, nomeando-o professor de Direito Penal da Faculdade Nacional de Direito da Universidade do Brasil, atual Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Ali lecionou, já encanecido e cercado de glória, quase como uma figura lendária, nos últimos anos de sua vida. Foi o bálsamo e o refrigério para a sua existência de lutas e incompreensões, pois encontrou nos jovens a consagração definitiva e despretensiosa que costuma ser negada pelos medíocres e pelos frustrados de todos os tempos.

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Mensageiro Jurídico, ano IX – facs. L – julho/agosto 1978, p. 17-26. O professor Albino Lima foi 1º Titular (Fundador) da Cadeira nº 93 da Academia Brasileira de Direito do Trabalho.

Como adendo ao artigo, consta a seguinte nota do autor: “Sem incluir as centenas, se não milhares, de artigos escritos diretamente para a imprensa (jornais e revistas), aí vai a relação de suas obras e opúsculos, como ele próprio costumava dizer: O Júri e a Nova Escola Penal, 1894; Estudinho de Direito: o Júri, 1896; A Questão das Prostitutas, 1897; Estudos de Direito Criminal, 1898; Contra os Artigos de Guerra, 1898; Marcelino Bispo (Estudos de Psicologia Criminal), 1898; O Processo Abel Parente, 1901; La Teoría Lombrosiana del Delincuente, 1902; Médicos e Curandeiros, 1902; Crianças Abandonadas e Crianças Criminosas, 1902; Apontamentos de Direito Operário, 1905; O Crime das Degoladas, 1907; Enrico Ferri, 1910; A Moral dos Jesuítas, 1911; Um Caso de Homicídio por Paixão Amorosa, 1914; Criminalidade da Infância e da Adolescência, 1916; 2ª ed. 1927; Extinção do Tráfico de Escravos no Brasil, 1916; A Lei do Ventre Livre, 1917; Os Acidentes do Trabalho e sua Reparação, 1929; Problemas de Direito Penal e de Psicologia Criminal, 1920; 2ª ed. 1924; Ensaios de Patologia Social, 1921; Reminiscências de um Rábula Criminalista, 1922; Prisões e Instituições Penitenciárias no Brasil, 1923; A Campanha Abolicionista, 1924, premiada pela Academia Brasileira de Letras; Minhas Prisões e Outros Assuntos Contemporâneos, 1927; Criminalidade Passional, 1933; Embriaguez e Alcoolismo, 1933; A Escravidão Africana no Brasil, 1933; Um Erro Judiciário: O Caso Pontes Visgueiro, 1934; Cárceres e Fogueiras da Inquisição. Processos contra Antônio José, o Judeu, 1935; Da Monarquia para a República, 1936; O Testemunho perante a Justiça Penal, 1939.

Ver também discurso de posse do Acadêmico Eduardo Henrique Raymundo Von Adamovich na Cadeira nº 36 em: https://www.andt.org.br/f/Discurso-de-posse-Adamovich-Cadeira-36.pdf

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