Oliveira Vianna

OLIVEIRA VIANNA

Por Arnaldo Süssekind

Francisco José de Oliveira Vianna, historiador, sociólogo, jurista, professor e cientista político, nasceu na cidade de Saquarema, na então Província do Rio de Janeiro, em 20 de junho de 1883. Tal como Euclídes da Cunha, Alberto Torres e Gilberto Freire, Oliveira Vianna interpretou o Brasil, analisando com profundidade a formação e o caráter do seu povo. Mas também compôs, com Joaquim Nabuco, Afonso Arinos e Miguel Reale, o elenco de notáveis juristas que souberam condicionar as manifestações do Direito aos fatos sociais cujos desdobramentos visam a regular.

Preciosa e extensa é a sua produção escrita.

O clássico “Populações Meridionais do Brasil”, cujo primeiro volume, referente ao centro-sul, foi publicado em 1920, revelou o renomado historiador e antropólogo social. O segundo volume, dedicado ao “campeador riograndense”, foi editado somente em 1952, após seu falecimento. No terceiro volume, que não chegou a escrever, pretendera estudar o sertanejo. Nessa obra e em “Raça e Assimilação” (1932), Oliveira Vianna fundamenta a tese de que, sob o ângulo psicossocial, havia três culturas em nosso país. E ressalta que em todas essas culturas o individualismo prevalecia sobre o espírito de solidariedade.

“Estude-se a história da nossa formação social e econômica – escreveu ele – e ver-se-á como tudo concorre para dispersar o homem, isolar o homem, desenvolver, no homem, o indivíduo. O homem socializado, o homem solidarista, o homem dependente do grupo ou colaborando com o grupo não teve, aqui, clima para surgir, nem temperatura para desenvolver-se”.

O historiador político despontou grandioso em “Evolução do Povo Brasileiro” (1923), quando interpretou os períodos colonial e imperial, além da primeira fase da nossa República, e, a nosso ver, se notabilizou na análise profunda exposta em “O Ocaso do Império” (1925), no qual recordou que,

“o partido que subia derrubava tudo, quer dizer, sacudia para fora dos cargos públicos, locais, provinciais e gerais, todos os ocupantes adversários. Era uma vassourada geral, que deixava o campo inteiramente limpo e aberto ao assalto dos vencedores”.

As conclusões de que em nosso País conviviam três culturas distintas e que o ser humano se individualizava explicam, a nosso ver, sua ostensiva colaboração com Getúlio Vargas na instituição do Estado Nacional implantado pela Carta Política de 1937, assim como sua decisiva participação na elaboração dos decretos-leis que reformularam o sistema sindical, visando à implantação de regime corporativo.

Conforme acentuou Evaristo de Moraes Filho, no mais completo estudo sobre “Oliveira Vianna e o Direito do Trabalho no Brasil” (Revista LTr, vol. 47, setembro de 1983, SP, págs. 1033 a 1048).

“O Estado surgido em 89 estava inteiramente desgastado; era preciso modernizá-lo com novas técnicas racionais de deliberação e comando. Organização era a palavra própria, e organização em todos os sentidos e em todos os graus da sociedade brasileira. O Estado moderno devia ser unitário; centralizador; autoritário, com o centro de decisão concentrado no Presidente da República; eliminado o sufrágio universal em favor do voto corporativo para câmaras corporativas; opinião pública organizada em torno dos interesses corporativos e não de heterogêneos partidos meramente políticos”.

Detendo-se na história do Estado brasileiro e da atuação dos órgãos que o compõem, o eminente sociólogo fluminense acentuou, na sua obra “O idealismo da Constituição”, que o primado do Poder Moderador Imperial verificou-se de 1824 a 1889; o do Poder Legislativo ocorreu na Primeira República, de 1891 a 1930 e no período de vigência da Constituição de 1934; o do Poder Executivo revelou-se com a Carta Política de 1937 e se manteve até a reedição do mencionado livro, em 1939. Se pudesse hoje atualizá-lo, certamente ele incluiria os anos de 1946 a 1960 na fase de expressiva atuação do Poder Legislativo e sublinharia, a partir de 1964, o predomínio do Poder Executivo, sobretudo nos últimos anos, quando o uso desmedido das Medidas Provisórias vem sendo praticado com o beneplácito do Congresso Nacional e a omissão da Suprema Corte.

Nas “Instituições Políticas Brasileiras” (Rio, 2 vols., 1949) – último dos seus livros publicados enquanto vivo – Oliveira Vianna expõe, com incomparável profundidade, os fundamentos sociais do Estado e a metodologia do Direito Público, destacando, tal como Jellineck, a força normativa da realidade na criação ou aperfeiçoamento das instituições jurídicas.

Alguns críticos rotularam de fascista o nosso homenageado, porque ele defendeu, sem subterfúgios, o regime político corporativo e atuou, como Consultor Jurídico do Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio, no preparo das normas legais que objetivavam caracterizar os grupos sindicais correspondentes às corporações. Não estou aqui a defender o Estado corporativo; mas é preciso enfatizar – até porque a confusão é geral – que a doutrina que lhe concerne é muito anterior à sua conspurcação por Mussolini. Aliás, o próprio Manoilesco, que desenvolveu o tema no “Le Siècle du Corporativisme”, ressaltou que

“A ideia do corporativismo, isto é, o conceito de uma constituição orgânica da sociedade, é por tal forma antiga, que se torna surpreendente possa alguém atribuir-lhe uma origem contemporânea. Desde os tempos mais remotos encontramos exemplos de sociedades organizadas em linhas corporativas”.

E, no prefácio à tradução desse livro, Azevedo Amaral refere “a grosseira perversão do conceito corporativista na organização das corporações fascistas”, assinalando que o ditador italiano

“fez dos núcleos corporativos, não os órgãos originários da soberania, mas apenas instrumentos reais ou menos burocráticos de um Estado absorvente e onipotente”.

Em homenagem à história, portanto, não nivelemos conceitualmente corporativismo e fascismo, com a intenção de, por ignorância ou má-fé, criticarmos homens públicos que muito fizeram pelo Brasil. Consoante verberou Geraldo Montedônio Bezerra de Menezes, ao discursar no centenário do seu mestre Oliveira Vianna,

“Não há, na sua pregação, o menor apego a ideologias estrangeiras, fascistas, comunistas ou que nome tenha. Ao revés, o escritor preconiza ‘a constituição do clima físico e moral próprio a fazer ressurgir e desenvolver, na consciência do trabalhador, o sentimento de sua dignidade humana e de sua elevação social’. Vai além. Apregoa – expressões dele – ‘a recristianização do trabalho e da vida’” (“Oliveira Vianna – Intérprete do Brasil”, Rio, 1983, pág. 14).

Bacharel pela Faculdade Livre de Direito do Rio de Janeiro (1905), Oliveira Vianna assumiu o cargo de Consultor Jurídico do Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio em 1932, integrou a Comissão de notáveis que redigiu o anteprojeto da Constituição de 1934, sendo eleito para a Academia Brasileira de Letras em 1937. Naquele cargo ele sucedeu a Evaristo de Moraes, que renunciou, com Lindolfo Collor, quando este, em março de 1932, deixou o Ministério que ajudara a criar e exilou-se no exterior.

No exercício dessa Consultoria, Oliveira Vianna teve a oportunidade de tornar efetivas algumas das suas ideias, tendo sido, sem sombra de dúvida, o mentor da atividade jurídica e legislativa dessa Secretaria do Estado até sua nomeação, em 1940, para Ministro do Tribunal de Contas da União. Ele deixou a marca da sua inteligência em todos os decretos legislativos, leis e decretos-leis que dispuseram sobre o Direito do Trabalho e a Previdência Social, sendo que, nos últimos doze meses, repartiu essa influência com Luiz Augusto do Rego Monteiro, que dirigia o Departamento Nacional do Trabalho.

As fontes materiais das referidas normas legais, produzidas pelo Ministério criado por Getúlio Vargas logo após a vitória da Revolução de 1930, foram, no atinente às relações individuais do trabalho, as convenções da Organização Internacional do Trabalho e a Encíclica Rerum Novarum. Já a legislação sobre organização sindical, decretada a partir de junho de 1939, adotou o sistema então vigente na Itália, cujo princípio fundamental era o monopólio da representação legal de todos os integrantes das categorias econômicas e profissionais pelos correspondentes sindicatos, agrupados em federações, as quais, por sua vez, deveriam compor uma confederação para cada ramo da economia.

Esse é um sistema sindical que, em nosso País, já deveria ter sido reformado. Pena que a Constituição de 1988 o tenha adotado por inteiro, apesar de ter cantado em prosa e verso que consagraria a liberdade sindical no seu tríplice aspecto: coletivo, individual e institucional. Trata-se, porém, de um sistema sindical, mas não de um ordenamento criado pelo fascismo, porquanto, dez anos antes, Lênin o implantou na União Soviética, inspirado no livro de Maxime Leroy. Quem sabe se, por isso, foi adotado pelo Decreto Legislativo que, em 1931, regulou a sindicalização, elaborado por socialistas confessos? A verdade é que Evaristo de Moraes, Joaquim Pimenta e Agripino Nazareth, que redigiram esse diploma legal, sabiam que num país de dimensões continentais, com absoluta prevalência da atividade rural, ter-se-ia de motivar a associação sindical e aproximar os trabalhadores da entidade que os representaria. O espírito sindical, como se sabe, é um dado sociológico que nasce espontâneo das concentrações operárias, inexistentes na economia agrícola de então. Já agora, como referido em nosso livro “Direitos Sociais na Constituinte”, o crescimento e os movimentos organizados pelas associações sindicais de todos os níveis, decorrentes do desenvolvimento econômico brasileiro, estavam a justificar a consagração da liberdade sindical nos termos da Convenção n. 87, da OIT.

A Constituição de 1934 previu a criação da Justiça do Trabalho (art. 122). Em consequência, o Ministro do Trabalho, Agamenon Magalhães, designou comissão, sob a presidência de Oliveira Vianna, para elaborar o respectivo anteprojeto de lei, que, acolhido pelo Presidente Vargas, foi submetido ao Congresso Nacional em dezembro de 1935. O professor paulista Waldemar Ferreira, Presidente da Comissão de Constituição e Justiça, foi designado seu relator.

Travou-se, então, notável debate público sobre o projeto de lei, principalmente no que tange ao poder normativo conferido à Justiça do Trabalho. Os reiterados pronunciamentos de Oliveira Vianna e Waldemar Ferreira, que motivaram vários discursos, artigos e editoriais, tomaram tal dimensão que acabaram condensados em dois livros de grande ressonância.

Waldemar Ferreira insurgindo-se contra a competência, afirmada no projeto governamental, para a Justiça do Trabalho “estabelecer tabela de salários e normas reguladoras das condições de trabalho” em determinados ramos de atividades profissionais, verberava:

“a Justiça do Trabalho, no regime constitucional brasileiro, tem a só e única função de dirimir questões entre empregadores e empregados, regidas pela legislação social. Resolve ela casos concretos. Resolvendo-os firma os precedentes judiciários, a outros casos aplicáveis, por via de analogia. Por essa forma, e nesse sentido, ela pode criar normas jurídicas, de caso em caso, como a justiça ordinária. Fora isso, não.

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Como, por outro lado, ainda pelo dispositivo do art. 3º, § 1º, da Constituição, é vedado aos poderes constitucionais delegar as suas atribuições – é evidente que o Poder Legislativo não pode delegar à Justiça do Trabalho a sua privativa competência de legislar, estabelecendo, no julgamento dos dissídios, normas gerais reguladoras das condições do trabalho” (“Princípios de Legislação Social e Direito Judiciário do Trabalho”, SP, vol. I, 1938).

Oliveira Vianna retrucou:

“Admitindo que a norma geral decretada, em sentença, pelos tribunais do trabalho, possa ser considerada uma norma legislativa, materialmente idêntica às normas gerais decretadas pelo Poder Legislativo – ainda assim, tratando-se, sem dúvida, de uma delegação de poder, nem por isso esta delegação, em face da tradição e da prática administrativa dos povos modernos, poderia ser considerada como incidindo na censura do art. 3º, § 1º, da Constituição”.

E, depois de ressaltar que a sentença normativa

“é no fundo, substancialmente, uma verdadeira arbitragem, um laudo de perito”,

escreveu:

“Na verdade, o que há em tudo isto, como veremos, é a aplicação de princípios e regras do direito judiciário e processual comum a tribunais que foram instituídos justamente com o objetivo de fugir, tanto quanto possível, ao regime destas regras e princípios. Não fora a necessidade de evadir-se – no julgamento dos conflitos econômicos e do trabalho da época industrial – ao formalismo dos tribunais ordinários e aos seus critérios julgadores e os tribunais do trabalho não teriam surgido, continuando a administração da justiça a ser feita dentro dos seus métodos e critérios tradicionais.

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Em face da sistemática do direito clássico, o contrato coletivo não é, realmente, um contrato; a sentença coletiva não é uma sentença (…)

Cada um deles é um novum genus.

Balizados com os mesmos termos e designações, com que são denominadas as velhas espécies tradicionais, daí provêm estes equívocos de conceituação que explicam o desentendimento dos velhos juristas, em face das novas categorias do Direito Social” (“Problemas de Direito Corporativo”, Rio, 1938).

Somente em 8 de junho de 1937 a Comissão de Constituição e Justiça aprovou o parecer do relator com diversas emendas ao projeto governamental. Ele se encontrava na Comissão de Legislação Social da Câmara, quando Getúlio Vargas, com ostensivo apoio das Forças Armadas, outorgou a Carta Política de 1937. E na mensagem dirigida à Nação, para justificar a nova ordem jurídico-política e o fechamento do Congresso, foi mencionada, entre outras justificativas, a resistência do Legislativo à aprovação do projeto de lei referente à Justiça do Trabalho.

O Estatuto Fundamental de 1937 dispôs, obviamente, sobre a Justiça do Trabalho, tendo o Ministro Waldemar Falcão designado comissão, sob a presidência de Oliveira Vianna, para elaborar os projetos que se transformariam nos Decretos-leis ns. 1.237 e 1.346, ambos de 1939. A 1º de maio de 1941 foi instalada a Justiça do Trabalho, que, a partir da Constituição de 1946, passou a compor o Poder Judiciário. Para a inserção dos tribunais do trabalho nesse Poder, foi decisiva a atuação do já citado discípulo do Oliveira Vianna, Geraldo Bezerra de Menezes, que se tornou, mui justamente, o primeiro Presidente do Tribunal Superior do Trabalho, no qual se transformara o Conselho Nacional do Trabalho.

No momento em que volta à baila a discussão sobre essa competência normativa, que muitos pretendem abolir, convém registrar, como o fez Julio César do Prado Leite, em conferência sobre o tema, que ela nasceu na Nova Zelândia, muito tempo antes de ser adotada pela “Magistratura del Lavoro”. Aliás a OIT, em estudo de direito comparado, apontou 34 países nos quais a arbitragem compulsória dos conflitos de trabalho é atribuída a órgãos administrativos ou a tribunais do trabalho (“Conciliación y Arbitraje en los conflictos de trabajo”, Genebra, 1987). E, como assevera o renomado jurista Plá Rodriguez, ao solucionar os dissídios coletivos,

“a decisão judicial resulta extremamente parecida com a arbitragem de direito, com a particularidade de que a decisão é dada por um juiz ou tribunal” (“A solução dos conflitos trabalhistas”, trad. de Wagner Giglio, SP, 1986).

Conforme recordou Oliveira Vianna, ao defender o primitivo projeto sobre a Justiça só Trabalho, não há nenhum fundamento na alegação de que essa competência normativa é de inspiração fascista, pois, à época, ela era encontrada em países democráticos e liberais como a Austrália, a Nova Zelândia, a Dinamarca e a Noruega, além do México e da Turquia. E concluía:

“Não há nenhuma correlação entre competência normativa e regime corporativo (…) O fundamento da normatividade é orgânico e não político” (ob. cit.).

Alguns juristas se insurgem contra a solução dos conflitos coletivos por tribunais do trabalho, porque não admitem que uma decisão do Judiciário possa ter, ao mesmo tempo, corpo de sentença e alma de lei. Mas, como ponderou Calamandrei,

“No fundo, esta duplicidade de aspectos das decisões da magistratura do trabalho não é mais que uma projeção no campo processual da duplicidade de aspectos que, no campo do direito substantivo, apresenta o contrato coletivo” (“Recueil d’études sur les sources au droit en honneur de François Gény”, Paris, 1938).

Afigura-se-nos que o ordenamento sobre o poder normativo da Justiça do Trabalho deveria hoje ser reformulado, com a finalidade de, dificultando o ajuizamente de processos de dissídio coletivo, motivar a autocomposição dos conflitos coletivos de trabalho. Mas essa competência dos tribunais de trabalho deveria ser mantida sob a denominação de “poder arbitral”.

Na oração que pronunciou em homenagem ao renomado pensador argentino José Ingenieros, Oliveira Vianna advertiu que:

“Um verdadeiro ideal não deve ser outra coisa senão uma antevisão da realidade social futura e não uma criação arbitrária da nossa fantasia. Nossa razão ao constituir um sistema de ideias, tem que se subordinar à realidade social, penetrar-se dela, nela buscar a inspiração, o conselho, a lição. Todo ideal que não se apoia na realidade atual e que não é a visão antecipada da realidade futura é apenas uma quimera sem objetivação possível”.

E conclui que é no passado

“que vamos encontrar o arquivo das experiências feitas pela sociedade; nele, portanto, é que vamos buscar as lições dos nossos erros; nele é que vamos inquirir das diretrizes da nossa evolução futura. Sem esse retorno crítico ao passado, ficaríamos sem os elementos de referência com que nortear a nossa projeção para o futuro” (“O idealismo da Constituição”, Rio, 2ª ed., 1939).

É inquestionável que Oliveira Vianna soube, como poucos intelectuais brasileiros, analisar, tanto a conexão entre o homem e a sua terra, como a relação entre a Nação e o Estado, sendo incontestável que ele foi o principal artífice da legislação social-trabalhista ainda vigente. Foi, por isso, com inquestionável justiça, que a nossa Academia consagrou o seu nome como Patrono da sua primeira Cadeira.

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Fonte: Revista da Academia Nacional de Direito do Trabalho, São Paulo: LTr, ano X, nº 10, 2002, p. 175-180.

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