Ação rescisória em caso de violação a precedente vinculante

30/03/2023

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Por Gustavo Filipe Barbosa Garcia

A decisão judicial, quando considerada vinculante pelo sistema jurídico, tem nítida natureza normativa, em harmonia com a pluralidade de fontes formais do Direito, que não se restringem às leis.

No âmbito do controle concentrado de constitucionalidade, as decisões definitivas de mérito, proferidas pelo Supremo Tribunal Federal, nas ações diretas de inconstitucionalidade e nas ações declaratórias de constitucionalidade produzem eficácia contra todos e efeito vinculante, relativamente aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal (artigo 102, § 2º, da Constituição de 1988).

Além disso, o STF pode, de ofício ou por provocação, mediante decisão de dois terços dos seus membros, após reiteradas decisões sobre matéria constitucional, aprovar súmula que, a partir de sua publicação na imprensa oficial, tem efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal, bem como proceder à sua revisão ou cancelamento, na forma estabelecida em lei (artigo 103-A da Constituição).

Entende-se por precedente a decisão judicial proferida em certo caso submetido ao Poder Judiciário, em que a ratio decidendi (ou seja, a razão de decidir ou o motivo determinante) passa a servir de parâmetro para o julgamento de outras demandas[1].

Segundo o entendimento mais tradicional, a inconstitucionalidade reconhecida incidentalmente pelo STF passa a ter eficácia erga omnes e vinculante quando o Senado, nos termos do artigo 52, inciso X, da Constituição, suspende a execução, no todo ou em parte, de lei declarada inconstitucional por decisão definitiva do Supremo.

Ao ampliar as hipóteses de provimentos jurisdicionais vinculantes, o artigo 927 do Código de Processo Civil estabelece que os juízes e os tribunais devem observar: I – as decisões do Supremo Tribunal Federal em controle concentrado de constitucionalidade; II – os enunciados de súmula vinculante; III – os acórdãos em incidente de assunção de competência ou de resolução de demandas repetitivas e em julgamento de recursos extraordinário e especial repetitivos; IV – os enunciados das súmulas do Supremo em matéria constitucional e do Superior Tribunal de Justiça em matéria infraconstitucional; V – a orientação do plenário ou do órgão especial aos quais estiverem vinculados.

Nesse contexto, não se considera fundamentada qualquer decisão judicial, seja ela interlocutória, sentença ou acórdão, que deixar de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte, sem demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento (artigo 489, § 1º, inciso VI, do CPC).

Do ato administrativo ou decisão judicial que contrariar a súmula vinculante do STF aplicável ou que indevidamente a aplicar é cabível reclamação ao STF que, julgando-a procedente, anulará o ato administrativo ou cassará a decisão judicial reclamada, e determinará que outra seja proferida com ou sem a aplicação da súmula, conforme o caso (artigo 103-A, § 3º, da Constituição de 1988, incluído pela Emenda Constitucional 45/2004).

De forma mais abrangente, cabe reclamação da parte interessada ou do Ministério Público para: I – preservar a competência do tribunal; II – garantir a autoridade das decisões do tribunal; III – garantir a observância de enunciado de súmula vinculante e de decisão do Supremo em controle concentrado de constitucionalidade; IV – garantir a observância de acórdão proferido em julgamento de incidente de resolução de demandas repetitivas ou de incidente de assunção de competência (artigo 988 do CPC, com redação dada pela Lei 13.256/2016). As hipóteses dos incisos III e IV do art. 988 do CPC compreendem a aplicação indevida da tese jurídica e sua não aplicação aos casos que a ela correspondam.

O executado pode alegar, na impugnação ao cumprimento da sentença, entre outras matérias, a inexigibilidade da obrigação (artigo 525, § 1º, inciso III, do CPC).

Nesse aspecto, considera-se também inexigível a obrigação reconhecida em título executivo judicial fundado em lei ou ato normativo considerado inconstitucional pelo Supremo Tribunal, ou fundado em aplicação ou interpretação da lei ou do ato normativo tido pelo STF como incompatível com a Constituição, em controle de constitucionalidade concentrado ou difuso (artigo 525, § 12, do CPC). Nesse caso, os efeitos da decisão do Supremo podem ser modulados no tempo, em atenção à segurança jurídica (artigo 525, § 13, do CPC).

Esclareça-se que a referida decisão do Supremo deve ser anterior ao trânsito em julgado da decisão exequenda (artigo 525, § 14, do CPC).

Se a mencionada decisão do STF for proferida após o trânsito em julgado da decisão exequenda, cabe ação rescisória, cujo prazo deve ser contado do trânsito em julgado da decisão proferida pelo Supremo (artigo 525, § 15, do CPC)[2].

Essas mesmas previsões são estabelecidas no artigo 535, §§ 5º a 8º, do CPC, sobre a impugnação ao cumprimento da sentença pela Fazenda Pública.

De forma semelhante, conforme o artigo 884, § 5º, da CLT, incluído pela Medida Provisória 2.180-35/2001, considera-se inexigível o título judicial fundado em lei ou ato normativo declarados inconstitucionais pelo STF ou em aplicação ou interpretação tidas por incompatíveis com a Constituição.

Cabe ressaltar que o Supremo julgou ser válida (ou seja, constitucional) a previsão legal no sentido da inexigibilidade de título executivo judicial fundado em lei ou ato normativo que tiverem sido declarados inconstitucionais pelo STF[3].

A decisão de mérito, transitada em julgado, pode ser rescindida quando violar manifestamente norma jurídica (artigo 966, inciso V, do CPC).

Logo, entende-se que as mencionadas previsões do artigo 525, §§ 12 a 15, do CPC e do artigo 535, §§ 5º a 8º, do CPC não afastam o cabimento da ação rescisória após o trânsito em julgado da decisão rescindenda (artigo 975 do CPC), com fundamento no artigo 966, inciso V, do CPC, na hipótese em que a decisão rescindenda deixa de aplicar ou contraria decisão vinculante do Supremo proferida antes do trânsito em julgado da decisão que se objetiva rescindir[4].

Frise-se que o STF fixou a seguinte tese de repercussão geral (Tema 733): “A decisão do Supremo Tribunal Federal declarando a constitucionalidade ou a inconstitucionalidade de preceito normativo não produz a automática reforma ou rescisão das decisões anteriores que tenham adotado entendimento diferente. Para que tal ocorra, será indispensável a interposição de recurso próprio ou, se for o caso, a propositura de ação rescisória própria, nos termos do artigo 485 do CPC [de 1973], observado o respectivo prazo decadencial (artigo 495)” (STF, Pleno, RE 730.462/SP, rel. min. Teori Zavascki, DJe 9.9.2015).

Tendo em vista a exigência de se preservar a segurança jurídica, nos termos da Súmula 343 STF: “Não cabe ação rescisória por ofensa a literal disposição de lei, quando a decisão rescindenda se tiver baseado em texto legal de interpretação controvertida nos tribunais”.

A respeito do tema, o Supremo aprovou a seguinte tese em recurso extraordinário com repercussão geral: “Não cabe ação rescisória quando o julgado estiver em harmonia com o entendimento firmado pelo Plenário do Supremo à época da formalização do acórdão rescindendo, ainda que ocorra posterior superação do precedente” (STF, Pleno, RE 590.809/RS, rel. min. Marco Aurélio, DJe 24.11.2014).

No entanto, em situação envolvendo relação jurídica tributária de trato sucessivo, o STJ admitiu o cabimento de ação rescisória em caso de precedentes vinculantes (acórdão de recurso especial repetitivo e acórdão de recurso extraordinário com repercussão geral reconhecida) firmados em momento posterior à coisa julgada (STJ, 1ª Seção, AR 6.015/SC, 2017/0074449-7, rel. min. Gurgel de Faria, j. 08.02.2023).

O Supremo fixou a seguinte tese de repercussão geral (Tema 881 e Tema 885): “1. As decisões do STF em controle incidental de constitucionalidade, anteriores à instituição do regime de repercussão geral, não impactam automaticamente a coisa julgada que se tenha formado, mesmo nas relações jurídicas tributárias de trato sucessivo. 2. Já as decisões proferidas em ação direta ou em sede de repercussão geral interrompem automaticamente os efeitos temporais das decisões transitadas em julgado nas referidas relações, respeitadas a irretroatividade, a anterioridade anual e a noventena ou a anterioridade nonagesimal, conforme a natureza do tributo”. Não houve modulação dos efeitos dessa decisão e entendeu-se que são aplicáveis as limitações constitucionais temporais ao poder de tributar (STF, Pleno, RE 949.297/CE, Red. p/ ac. min. Roberto Barroso, j. 8.2.2023. RE 955.227/BA, rel. min. Roberto Barroso, j. 08.02.2023).

O referido entendimento é passível de crítica, ao fazer cessar a autoridade da coisa julgada material, nas relações jurídicas tributárias de trato sucessivo, em decorrência não de alteração legislativa, mas de decisão proferida pelo Supremo mesmo em recurso extraordinário com repercussão geral, de forma automática, ou seja, independentemente de ação revisional (artigo 505, inciso I, do CPC) ou de ação rescisória, em prejuízo da segurança jurídica e da garantia fundamental prevista no artigo 5º, inciso XXXVI, da Constituição.

Conclui-se que a jurisprudência, notadamente quanto a certas modalidades de precedentes, passou a ter conotação obrigatória e força vinculante, como se observa no Código de Processo Civil.

Sendo assim, nas situações de descumprimento de provimentos jurisdicionais vinculantes, o sistema jurídico estabelece o cabimento de determinados instrumentos processuais, merecendo destaque a ação rescisória.


[1] GARCIA, Gustavo Filipe Barbosa. Manual de direito processual civil. 3. ed. São Paulo: Juspodivm, 2021. p. 766-770.

[2] “No atual regime (CPC/15), se a decisão do STF, sobre a inconstitucionalidade, for superveniente ao trânsito em julgado da sentença exequenda, ‘caberá ação rescisória, cujo prazo será contado do trânsito em julgado da decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal’” (STF, ADI 2.418/DF, Rel. Min. Teori Zavascki, j. 04.05.2016, voto do relator).

[3] “3. São constitucionais as disposições normativas do parágrafo único do art. 741 do CPC, do § 1º do art. 475-L, ambos do CPC/73, bem como os correspondentes dispositivos do CPC/15, o art. 525, § 1º, III e §§ 12 e 14, o art. 535, § 5º. São dispositivos que, buscando harmonizar a garantia da coisa julgada com o primado da Constituição, vieram agregar ao sistema processual brasileiro um mecanismo com eficácia rescisória de sentenças revestidas de vício de inconstitucionalidade qualificado, assim caracterizado nas hipóteses em que (a) a sentença exequenda esteja fundada em norma reconhecidamente inconstitucional – seja por aplicar norma inconstitucional, seja por aplicar norma em situação ou com um sentido inconstitucionais; ou (b) a sentença exequenda tenha deixado de aplicar norma reconhecidamente constitucional; e (c) desde que, em qualquer dos casos, o reconhecimento dessa constitucionalidade ou a inconstitucionalidade tenha decorrido de julgamento do STF realizado em data anterior ao trânsito em julgado da sentença exequenda. 4. Ação julgada improcedente” (STF, Pleno, ADI 2.418/DF, Rel. Min. Teori Zavascki, DJe 17.11.2016).

[4] “Recurso ordinário em ação rescisória. Julgamento conjunto da ADPF nº 324 e do RE nº 958.252. Decisão vinculante do STF anterior ao trânsito em julgado da decisão rescindenda. Norma jurídica. Ação rescisória ajuizada com lastro no artigo 966, V, do CPC. Cabimento. 1. O Tribunal Regional, após indeferir o pedido de tutela provisória consistente na suspensão da execução que se processa nos autos da reclamação trabalhista subjacente, afastou o cabimento da ação rescisória, julgando extinto o processo sem resolução de mérito, nos termos do art. 485, IV, do CPC, ao fundamento de que a decisão rescindenda transitou em julgado em momento posterior ao julgamento conjunto da ADPF nº 324, de relatoria do Ministro Luís Roberto Barroso, e do RE nº 958.252 (Tema 725 da Repercussão Geral), de relatoria do Ministro Luiz Fux. 2. Ocorre que a Suprema Corte no julgamento da ADPF nº 324 e do RE nº 958.252 externou o conteúdo de norma jurídica vinculante e de aplicação imediata consubstanciada na licitude da terceirização ou de qualquer outra forma de divisão de trabalho entre pessoas jurídicas distintas, restando insubsistente a Súmula 331 do TST. 3. Portanto, considerando a ocorrência do trânsito em julgado do acórdão rescindendo em momento posterior à decisão vinculante do Supremo Tribunal Federal, admite-se o cabimento da ação rescisória, nos termos do art. 966, V, do CPC, pois, do contrário, estar-se-ia impondo obstáculo injustificável ao exercício do direito de ação consubstanciado na pretensão de corte rescisório sob a perspectiva do padrão decisório vinculante materializado no julgamento conjunto da ADPF nº 324 e do RE nº 958.252. 4. Nesse sentir, a previsão de impugnação à execução com base na inexigibilidade de título executivo judicial fundado em lei ou ato normativo considerado inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal, ou fundado em aplicação ou interpretação da lei ou do ato normativo tido pelo STF como incompatível com a Constituição Federal, em controle de constitucionalidade concentrado ou difuso (CPC, art. 525, § 1º, III, e §§ 12 e 14), não afasta o manejo de ação rescisória após o trânsito em julgado da decisão rescindenda (art. 975, ‘caput’, do CPC). 5. Com efeito, impõe-se o cabimento de ação rescisória, nos termos do disposto no art. 966, V, do CPC, nas hipóteses em que a decisão rescindenda deixa de aplicar ou aplica equivocadamente padrão decisório vinculante do Supremo Tribunal Federal proferido antes do trânsito em julgado da decisão que se objetiva rescindir. Recurso ordinário conhecido e provido” (TST, SBDI-II, ROT-11492-19.2019.5.03.0000, Rel. Min. Morgana de Almeida Richa, DEJT 10.03.2023).

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