Vivemos em um mundo de mudanças aceleradas, no qual o futuro é cada vez menos uma extrapolação do passado.
Gary Hamel
Antonio Carlos Aguiar[1]
RESUMO:
O profissional do século XXI – e com o do direito não é diferente – tem de compreender que ele se encontra inserido numa sociedade complexa, que exige um mindset digital para compreensão e solução dos problemas e oportunidades que lhe são apresentadas. Velocidade, resiliência e, em especial capacidade de dar nexos a tudo que compõem o mundo à sua volta, o faz ter de ser maior do que um especialista e/ou generalista. Esse é o desafio do nexialista.
ABSTRACT
Professionals in the 21 st century – and the legal profession is not different – must understand that they are inserted in a complex society, which requires a digital mindset to understand and solve the problems and opportunities presented to them. Speed, resilience and the ability to link everthing that makes up the world around him, makes him must be greater than a specialist and/or generalist. This is the challenge os the nexialist.
PALAVRAS CHAVES
Ecossistema. Complexidade. Velocidade. Especialista. Generalista. Nexialista.
KEYWORDS
Ecosystem. Complexity. Speed. Specialist. Generalist. Nexialist.
O presente trabalho, em vez de se pautar pela emissão de opiniões consolidadas, pessoal e individualmente fundamentadas, derivadas de estudos aprofundados em crenças reais, básicas e fincadas em princípios científicos estruturantes analógicos, tem outro objetivo: o de provocar.
Provocar pensamentos.
Provocar certas certezas.
Provocar o alcance efetivo e eficiente de princípios presos a um passado que não condiz mais necessariamente com o que acontece na realidade mutante, que se desloca em velocidade extenuante.
Provocar o bívio lugar de encontro e desencontro de dicotomias: analógico-digital; passado-futuro; novo-velho; homem-mulher; inclusão-exclusão; forte-frágil; generalista-especialista.
Provocar o diálogo, pois, afinal de contas, como bem destaca Leandro Karnal, “somos bons de briga e ruins de debate”[2].
Provocar a pensar, com reflexão, de maneira exponencial e para frente, diferentemente de apenas manter o olhar fixo às quadradas certezas refletidas no espelho retrovisor de um mundo analógico e distante, alojado em algum lugar do passado.
Provocar escolhas que vão além do trajeto da linha de produção linear-escolar que nos foi repassada ao longo de nossa vida educacional e profissional.
Provocar opções de atuação sem medo de errar.
Provocar atitudes profissionais do tipo startup. Nas escolas, o erro implica perda de pontos na prova. No mundo corporativo tradicional, eles trazem consigo punições, que vão desde advertências até uma rescisão com justa causa. No ecossistema das startups o erro se traduz em um passo adiante. Trata-se de mais um degrau na escada que nos leva ao objetivo pretendido. Faz parte da plêiade de atos rumo à inovação.
Provocar a inovar, por métodos que muitas vezes exigem pivotar.
Pivotar que vem de pivot e significa se mover em torno do próprio eixo, sendo uma forma de manter a base de uma ideia, crença ou ideal, sem abandoná-los, buscando, simultaneamente, encontrar novas saídas para que elas cresçam e se desenvolvam.
Pivotar não significa lançar-se do zero, mas, diferentemente, aprender com as lições do que não deu certo, para, então, se adaptar.
O termo foi usado pela primeira vez por Eric Ries, autor do best-seller The Lean Startup, publicado em 2011[3]. Faz parte do método desenvolvido para que se possa construir, medir e aprender de forma ágil.
O mundo que vivemos exige essa forma de procedimento veloz e adaptável. Não mais habitamos espaços de trabalho, convívio e aprendizado lineares, pelos quais caminhamos por uma esteira de acontecimentos previsíveis e temporalmente passíveis de planejamento retilíneo.
Vivemos uma era de mudanças exponenciais.
Vivemos, como bem destaca Pierre Levy, num planeta nômade.
“O espaço do novo nomadismo não é o território geográfico, nem o das instituições ou o dos Estados, mas um espaço invisível de conhecimentos, saberes, potências de pensamento em que brotam e se transformam qualidades do ser, maneiras de constituir sociedade. Não os organogramas do poder, nem as fronteiras das disciplinas, tampouco as estatísticas dos comerciantes, mas o espaço qualitativo, dinâmico, vivo da humanidade em vias de se auto inventar, produzindo o seu mundo.
Onde encontrar os mapas móveis desse espaço flutuante? Terra incógnita. Mesmo que consigais por vossa própria conta alcançar a imobilidade, a paisagem continuará a fluir, girar em torno de vós, a vos infiltrar, a transformar-vos a partir de dentro. Não é mais o tempo da história, tendo como referência a escrita, a cidade, o passado, mas de um espaço móvel, paradoxal, que nos vem igualmente do futuro. Não o apreendemos como uma sucessão, só interrogamos as tradições, a seu respeito, por meio de perigosas ilusões de óptica. Tempo errante, transversal, plural, indeterminado, como o que antecede as origens.”[4]
Vivemos num mundo BANI.
“O conceito de Mundo BANI foi criado no ano de 2018 pelo autor futurista e antropólogo norte-americano Jamais Cascio, após observar que o Mundo VUCA[5] tinha ficado obsoleto e não se aplicava mais à realidade de um mundo tão acelerado quanto o nosso, principalmente após a pandemia da Covid-19.
O termo BANI significa Brittle, Anxious, Nonlinear and Incomprehensible. Em português, podemos chamar de FANI: Frágil, Ansioso, Não linear e Incompreensível. Tais adjetivos definem muito bem a realidade que vivemos:
Brittle (Frágil)
No conceito BANI, o entendimento é de que o mundo em que estamos vivendo é frágil e parte do princípio de que o que temos certeza hoje pode virar uma incerteza amanhã. Ou seja, é preciso considerar que uma situação favorável e positiva pode simplesmente tomar um outro rumo.
Assim, o Mundo BANI pede que a gente esteja sempre preparado para enfrentar o imprevisível. A ter, sempre, uma carta na manga, uma saída para situações urgentes e extremas.
Anxious (Ansiedade)
A incerteza gera ansiedade. O senso de urgência tem pautado as decisões e isso acaba virando gatilho para desencadear sentimentos de tristeza e angústia. As pessoas estão trabalhando com uma margem de erro maior, porém, fazem uso de atitudes mais rápidas para aproveitar oportunidades.
Diante de tantas tragédias e notícias ruins, as pessoas têm se fechado em uma bolha para se manterem afastadas de tudo aquilo que causa algum sofrimento. É uma tentativa de criar a falsa ilusão de que cada um de nós tem controle sobre as coisas.
Nonlinear (Não linearidade)
Planejamentos a longo prazo podem não fazer mais sentido no Mundo BANI. Isso acontece porque várias ações estão em curso simultaneamente e, em um mundo não linear, nós não temos controle daquilo que está por vir.
Ao mesmo tempo é difícil ver as conexões entre diferentes coisas ou perceber que outros projetos e processos acontecem paralelamente ao nosso redor. É por isso que o Mundo BANI nos coloca em uma constante mudança, mostrando que, rapidamente, teremos que adaptar a forma como trabalhamos para fazer parte dessa nova realidade.
Incomprehensible (Incompreensível)
Não é de hoje que buscamos respostas para tudo, afinal, o que mais temos acesso hoje em dia são informações. Só que, por outro lado, montar uma estratégia baseada apenas em dados pode não ser sinônimo de sucesso, uma vez que mudamos de ideia o tempo todo.
Diante de uma realidade com tantas mudanças e acontecimentos, é fácil perder a conexão com a realidade e ter dificuldade em compreender o mundo em que estamos vivendo. O avanço tecnológico também fez a sua contribuição em diversas áreas e a sensação que temos hoje é que já não é mais possível entender a forma como as coisas funcionam”.[6]
Quanta mudança e em tão curto espaço de tempo. Como enfrentar tudo isso?
Eis aqui o nosso desafio. E o pior de tudo. Não temos a resposta. Apenas pistas. Logo, podemos (ou iremos) errar. De todo modo, com a clara certeza de que temos a oportunidade (e certamente iremos) de pivotar. E, desta maneira, inovar, nos adaptar e vencer.
Todo ecossistema é uma unidade natural constituída de parte não viva (passiva) e de parcela viva (ativa), que interagem ou se relacionam entre si, formando um sistema estável.
É considerado no e pelo todo.
Um conjunto de todos os organismos que habitam num determinado espaço vital, com a totalidade de fatores animados ou inanimados desse espaço.
Dentro do ecossistema do direito entrelaçam-se, para formação do seu bioma, elementos advindos de modelos analógicos e digitais, que têm características e desdobramentos diferentes, por vezes díspares, que exigem estudo e análise individualizada, a fim de se evitar conclusões equivocadas, com exigências de um sobre o outro como se iguais fossem.
Os integrantes do ecossistema interagem entre si por meio de fatores bióticos, ou seja, por intermédio do contato direto entre as diversas populações que o compõe, e abióticos, em razão de fatores externos, o que, ao final, corresponde exatamente a essa cultura de conformação e formação de todas as relações dos organismos entre si, e com seu meio ambiente, na composição do que se denomina de ecossistema.
O ecossistema do direito é vivo e mutante (a todo instante)
E onde entra o/a profissional do direito?
Ora, ele/ela é um/uma dos seus habitantes; e, diga-se: dos mais graduados e atuantes!
Exerce seu mister de maneira programática junto ao tabuleiro desse viver em sociedade, a fim de que sejam mantidas todas as condicionantes de convívio regrado, sendo que eventuais desvios são tratados via procedimentos de gestão dos quais são guardiões/guardiãs.
Para tanto, exercem suas atividades de modo tradicional: subdividem-se em generalistas, com aptidões mais gerenciais e especialistas, subdivididos em várias classes de atuação, com consultiva e/ou contenciosa, repartidas em subclasses, a depender da área de atuação específica do profissional.
Há todo um mapeamento detalhado, prevendo o devido enquadramento, por meio de casas individualizadas por matéria, para a sua devida e perfeita atuação dentro desse tabuleiro jurídico-social-profissional.
Ele/ela faz seu trabalho de acordo com os instrumentos cognitivos que lhes foram distribuídos ao longo dos estudos que realizaram e ainda realizam na sua jornada, que vem desde os bancos escolares, repassado programaticamente na linha de produção educacional, até os dias de hoje, dentro das subdivisões estanques e por áreas em que estão inseridos.
Todo esse processo é normal, aceito e funcional.
A provocação, ou melhor, a sugestão de atenção que se faz aqui, não vem com ares reformistas próprios de quem defende uma verdade diferente, com pretensões modificativas de urgência de todo status quo vigente.
Não. A intenção é de reflexão, devidamente apropriada a todo aquele que estuda, pensa, analisa e, eventualmente, propõe formas de inovação.
Deste processo inquieto de observação deste tipo de cultura da divisão do saber tradicional, parece-nos não ser o ideal ou, pelo menos, o único, para enfrentamento das exponenciais alterações vivenciadas neste mundo BANI, a forma tradicional de fatiamento de conhecimento para solução de problemas complexos.
No dia a dia de nossa atuação profissional, após nossa formação escolar precedida por esse fatiamento, acabamos, em nossa grande maioria transformados em especialistas.
Por certo, eu me incluo aqui. Nada de errado nisso. Talvez, tão somente, incompleto.
Nos especializamos em determinados campos específicos do direito. Nossa área de atuação, tal como nos foi repassada/ensinada, limita-se a um pedaço do corte epistemológico-didático do bolo jurídico (que cresce a cada dia por intermédio do fermento exponencial que a sociedade lhe adiciona), que, no seu conteúdo tem vários (e muitos novos) recheios.
Esse viés de divisão, nos faz apresentar soluções de túnel, uma vez que enxergamos a situação pelo comando de nossa visão de túnel, “termo usado para a perda da visão periférica, ou seja, aquela que permite enxergar o campo visual lateral. Nesses casos, a pessoa enxerga perfeitamente o que está na frente – visão central –, mas apresenta dificuldade para enxergar nas laterais”[7], justamente o que acontece com a especialidade, formada por um dos pedaços do direito.
Por vezes, contudo, a vida real acaba por ser diferente e mais abrangente, nos traz “o novo” e seus, também novos, problemas, que não se cingem aos nacos de agruras específicos que conhecemos, o que torna muito difícil e, por vezes, até impossível, para sua resolução, a prescrição dos remédio-jurídicos-fracionados-estanques-equidistantes de que dispomos.
Nessas situações, na grande maioria, nos socorremos de outros especialistas, para buscar novos remédios.
Todavia, nós, especialistas, temos dificuldades com esses “encontros multidisciplinares”, uma vez que nossa rotina de formação se dá com os iguais. Profissionalmente crescemos, por meio da troca de aprendizado e de ideias com os que atuam dentro da nossa bolha estrutural de conhecimentos; do nosso pedaço-de-direito, o que faz com que evitemos, ainda que não propositalmente, o ingresso de saberes estranhos, que poderiam retirar a pureza da nossa especialidade.
Por isso, é tão complicado, pensar e agir de maneira mais ampla e complexa.
Temos,porém, de pensar e trabalhar no meio dessa complexidade.
Complexidade que pode ser compreendida como um sistema composto de inúmeros elementos, camadas e estruturas, onde as inter-relações condicionam e redefinem continuamente o funcionamento do todo, definição que vem de um livro intitulado Design para um mundo Complexo, e não à toa aqui é citado, a fim de demonstrar que a análise do e para o Direito deve alcançar tudo e todos, para efetiva materialização e compreensão da diversidade do mundo novo.
O livro ainda traz como exemplo uma metrópole, que é constituída por diversos sistemas interligados e incontáveis elementos, numa relação intrincada de vaivém, sobe e desce, criação e destruição contínuas, sem que se saiba onde ela começa ou termina, e sem que ela venha a se extinguir nunca.
Com o Direito não é diferente.
Nosso desafio, portanto, passa pelo destemor ao novo. Pela perda do medo de errar. Pelo desviar do caminho unicamente traçado pela esteira linear de aprendizado. Pela busca do pulsar criativo. Pelo encontro de nexos. Pelo simples pensar o (ou um)novo. Pelo “aceitar, aprender e, de quando em vez, ensinar. Ninguém perde nesse jogo, pois aquele que tiver mais dados e argumentos mostrará um caminho melhor para seguir.”[8]
Mais do que nunca há a necessidade de observar o mundo pela lente de um zeitgeist internético[9], própria de um lugar de trabalho abrigado pela multidisciplinariedade, pelo imprevisível e enfatize-se: formado por “pessoas híbridas”.
Sim. “Nos tornamos híbridos. Parte de nós é humana, ainda é orgânica. Mas, parte de nós já se tornou máquina. Porque quando alguém diz estou sem bateria (quando na verdade é o celular que está), a simbiose entre homem e máquina já foi absorvida pelo espectro psicológico. Somos uma interface conectada, que entra em desespero se estamos sem sinal de wi-fi – ou simplesmente esquecemos o celular (…). Sentimos que o vidro do celular quebrado é quase como uma cicatriz na nossa pele”[10].
O/A profissional do século XXI pode ser definido como um homo zappiens, conceito utilizado por Venn & Vrakking para definir os alunos o século XXI, mas que bem se enquadra ao trabalhador/a atual, na medida em que ele/ela também é “direto, ativo, impaciente, incontrolável e, de certa forma, indisciplinado (…), que aprende muito cedo que há muitas fontes de informação e que essas fontes podem defender verdades diferentes”[11] e, como tal, não pode ser regrado por normas e/ou ditames próprios de um mundo linear.
Não dá para “rodar” o hardware de uma sociedade eminentemente analógica dentro do software desses novos trabalhadores e seus novos trabalhos.
Dá pau.
A diversidade sempre avança sobre a tradição. O novo invariavelmente desafia o antigo. Novas tecnologias, inovações e alternativas de enfrentamento de crises e busca por sustentabilidade financeira crescem em torno do ecossistema circular tradicional, como um rizoma numa planta. Entender e saber como enxergar essa teia simétrica de oportunidades, mitigando excessos de forma, que não se transforme num rabisco transfigurado, se faz necessário e urgente.
O mundo não é plano, no que comporta à sua progressão, movimentação e constância no quesito mudança constante da sua realidade social. No que concerne ao mundo jurídico, a situação não é diferente. Todo um conjunto mutante entrelaça-se e se perfaz numa somatória de pedaços sociais, desenhado num mosaico transformador.
Essa soma de pedacinhos é o que nos faz (exige) pensar, criticar, analisar, escutar, auscultar, refletir e despertar.
Vivemos tempos contraditórios e ao mesmo tempo de pura e mágica diversidade.
Celebremos a diversidade.
Os mais velhos nem sempre têm total razão; mas ainda continuam a ser detentores de grande experiência; os mais jovens podem ser afoitos, acelerados e, por vezes equivocados, mas trazem consigo o frescor da juventude, o poder da renovação e o destemor para transgredir e ultrapassar fronteiras; a tecnologia pode e é ameaçadora, faz estragos sociais, mas, traz consigo as bençãos digitais de cura e melhoria de vida e bem estar aos seres humanos, afinal de contas, o fim (de finalidade e não de término) da sua existência.
Uma diversidade de opções que não se limita à dicotomia do certo e errado. A discussão, como bem destaca João Gabriel de Lima, faz uma viagem da turma de Marx à turma de Mark. “Os jovens que nasceram na era de Mark, o Zuckerberg, têm tanta sede de conhecimento quanto a geração que lia Marx, o Karl. Isso fica claro num dos episódios do podcast Política Sub 30, protagonizado pelo deputado Felipe Rigoni e intitulado ‘O menino que estudou para ser político’. Vários deles vêm de movimentos da sociedade civil e fizeram cursos de formação. A turma do Marx estava interessada nas ideias filosóficas que regem os governos. A turma de Mark é mais pragmática: quer saber quais políticas públicas dão resultado, como foram aplicadas em outros países e em que medida podem nos inspirar”[12].
Os tempos de Mark exigem soluções diferenciadas, diversificadas, criativas e transparentes. “O novo é quase sempre aterrorizante, precisamente porque ele carece das camadas de familiaridade com que a memória acolchoa nossa relação com o mundo”[13].
Acontece que os tempos atuais, de complexidade e diversidade, exigem soluções multiformes, não presas a estruturas com amarras no passado.
“A identidade é sempre compósita, construída a partir de muitas partes e possuindo diversas facetas. A mesma pessoa pode ser homem, pai, marido, arquiteto, surfista, entusiasta de alpinismo, amante do jazz, torcedor de time de futebol, ex-militante de partido, tudo ao mesmo tempo (…) A identidade está em fluxo constante e sujeita a transformação, equivalendo a um somatório de experiencias, multiplicadas pelas inclinações de divididas pelas memórias.”[14]
A época de mudanças exponenciais e disruptivas faz com que estejamos energizados pelo risco e desobedecer ao stablishment analógico que suporta a lógica do “certo vs. o errado”.
Novos fatos. Todos prenhes de conhecimento. Conhecimento com enfretamento e coragem para desdizer o que foi dito em determinadas condições, apropriadas à época em que foram analisadas e dimensionadas para contribuir positivamente para uma situação hipotética caminhante entre o presente e o futuro. Por isso, a importância de uma releitura doutrinária e de sua adaptação às necessidades presentes.
O futuro que se desenhou no passado, ainda que com as melhores tintas e intenções, pode não refletir a verdade que se esperava dele, justamente no momento, em que alcança a idade adulta, quando se torna presente. A realidade atropela o que fora pensado e projetado.
No universo digital esse quadro de limitação informativa não encontra guarida. O que se tem é “a passagem do material para o imaterial, da revolução das máquinas operadas pelo ser humano à utilização de meios tecnológicos operados pelo computador e sua inteligência artificial. Uma ampla modificação nas relações, as quais se dão entre os indivíduos, instituições, nações, Estados, setores organizados e a própria sociedade, e estas não se limitam a mudanças pontuais, mas, cuja força de impacto desloca-se para representarem profundas e substanciais alterações, exercendo, assim, forte influência no tecido social”[15].
F.A. Hayek, em seu livro O uso do conhecimento na sociedade destaca que “se concordamos que o principal problema econômico da sociedade gira em torno da rápida capacidade de adaptação às mudanças em determinadas circunstâncias de tempo e espaço, então, consequentemente, as decisões finais deveriam ser tomadas pelas pessoas mais familiarizadas com essas circunstâncias, que conhecem diretamente as mudanças mais relevantes e os recursos prontamente disponíveis para enfrentá-las”[16].
Para uma compreensão e enquadramento adequados deste novo, nada melhor do que a utilização da lógica abdutiva, conceito que foi, originalmente, “desenvolvido pelo filósofo norte-americano Charles Sanders Peirce, o qual afirmava que “não era possível provar nenhum novo pensamento, conceito ou ideia, antecipadamente. Toda nova ideia pode somente ter validade no desdobrar de acontecimentos futuros”.[17] O raciocínio abdutivo busca a melhor explicação possível, por meio da verdade. Utiliza-se da criatividade e a inovação, a fim de construir novas ideias.
Criatividade e inovação.
Passado, presente e futuro.
Algo muito próximo do que nos ensina Santo Agostinho; “O futuro não existe, quem o nega? Mas, apesar disso, sua espera já está em nosso espírito. O passado não existe mais, quem o duvida? Mas, apesar disso a lembrança está em nosso espírito. O presente é sem extensão, é apenas um ponto fugidio, quem o ignora? Mas, apesar disso a atenção é duradoura.”
Como bem explica Adauto Novaes[18], “ao falar de espera, da lembrança e da atenção, Agostinho põe em evidência o espírito – ou o trabalho permanente da inteligência como potência de transformação –, que é a chave para abarcar as três dimensões do tempo.
O espírito!
O espírito de atuação do profissional de direito.
Um espírito próprio do nexialismo, ou seja, daquele que faz conexão de diferentes saberes.
“O termo surgiu em um conto de ficção científica dos anos 1952, chamado “The Voyage of the Space Beagle”, de A. E. van Vogt, que conta a história da viagem da nave espacial “Space Beagle” rumo à exploração do universo. Estavam presentes nessa nave especialistas de diversas áreas do conhecimento: biologia, física, astronomia, química, antropologia, e assim por diante.
Na obra sempre que a tripulação se deparava com um desafio no espaço, nenhum desses especialistas conseguia resolver o problema, pois eles eram sempre complexos e multidisciplinares. Entretanto havia somente um personagem, o protagonista da história, chamado Elliot Grosvenor, que era especialista em nada. Ele era o tal do “nexialista”: sabia um pouco, o suficiente, de cada uma dessas áreas do conhecimento e, principalmente, conseguia criar conexões e relações entre elas que aparentemente não existiam. E isso era justamente o que resolvia os desafios no espaço”. [19]
Importante destacar que nossas provocações não têm o intuito de exclusões!
Há, sim e ao contrário, uma reverencia ao somatório; à diversidade. Não há nada errado em sermos especialistas ou generalistas e agirmos como nexialistas. O importante é criar conexões e nexos entre saberes, especialmente onde estas relações não são óbvias. Irmos além do conhecimento fracionado, para o encontro da complexidade, numa busca infinita de e por conexões, para compreensão e até questionamento com a realidade que nos atropela.
Para dar maior praticidade à ideia e forma de busca por conexões, Luís Mazini e Matheus Ortiz, criadores do projeto Onisofia, que tem o propósito de disseminar o conceito de Nexialismo no Brasil, descrevem quais seriam as 05 (cinco) atitudes básicas de um profissional nexialista:
“Captação sensorial ativa: habilidade de se colocar presente no momento e usar os diferentes sentidos sensoriais, de preferência combinados, para absorver, sem reagir, as informações externas. Em outras palavras, podemos dizer que é explorar nossos sentidos sensoriais para aprender com o ambiente.
Intuição: escolhida como uma atitude nexialista por ser uma ferramenta de melhoria do poder de escolha consciente, por meio da melhora das conexões da mente inconsciente.
Visão Holística: desenvolver uma visão holística é simplesmente exercitar uma percepção mais ampla da realidade, entendendo as interrelações entre as coisas. E como compreender o mundo que vivemos sem entender essas interdependências e conexões?
Acreditamos que a visão holística é fundamental para resolvermos os problemas da nossa era, onde reina a complexidade.
Observar a natureza: a atitude de ‘observar’ está aqui com o significado de ‘aprender’. Na natureza, os processos e seres biológicos e não biológicos estão conectados. Se observarmos bem, vamos descobrir que preponderam ciclos ao invés de processos lineares na natureza. Esta atitude serve como guia para aprendermos com quem está a 4,5 bilhões de anos (idade do planeta Terra) resolvendo seus problemas.
Brotabilidade: também um neologismo criado por nós, a brotabilidade é a junção da própria criatividade e de como essa habilidade interage com o meio em que está inserida, considerando também o tempo. Para ficar mais claro, gostamos de fazer a analogia do processo de criação de uma planta, desde a semeadura até a colheita. Aqui, a criatividade é como a semente. Todo o potencial de criação está dentro dela. Mas a semente por si só não garante que surgirá uma planta saudável, o que significa a criação. Para isso, é necessário que o solo (meio), os nutrientes (conhecimento externo) e a interação entre as sementes e raízes plantadas no mesmo solo (ambiente psicologicamente seguro) sejam apropriados para a saúde de todas as plantas (criações do ecossistema). E, por último, mesmo com todas as condições favoráveis, é necessária paciência para que todos os componentes interajam e criem uma planta saudável para ser colhida e alimentar o ecossistema”[20].
Para um profissional do direito, sempre com uma visão mais racional e tradicional das coisas, o texto acima pode, à primeira vista, parecer muito lúdico e fora da realidade do seu dia a dia.
Contudo, não o é.
A primeira citação que é feita neste trabalho refere-se às mudanças aceleradas, que tornam o futuro cada vez menos uma extrapolação do passado. E aqui está o desafio. Não há jurisprudência consolidada. Há incertezas. Não há subsunção de fatos à norma, porque os fatos sequer por nós são compreendidos, muito menos passiveis de pleno regramento de encaixe. Juste-se a tudo isso, o caráter efêmero de muitas das ocorrências. O que é notícia hoje, alardeando que tudo não será mais como antes, pode mudar em pouquíssimo tempo. Lembram do metaverso?
Todo esse processo de mudanças exponenciais vem se acelerando vertiginosamente. Até então, ao longo desses quase 15 milhões de existência (usando-se do racional do “Big Bang”[21]), a velocidade em que a matéria se organizava se dava por intermédio de estruturas e sistemas de forma gradual e imperceptível.
Tudo mudou.
Esse processo de aceleração repentina que vivemos “é produto de mudanças radicais no crescimento do poder computacional e da capacidade de rede. O último iPhone (isso há dois anos!) tem quase seis mil vezes mais transistores do que o chip i486 que alimentava os PCs no final dos anos 1980. Em 2017, o tráfego global da internet atingiu mais de 46.600 gigabytes por segundo – um aumento de quase 40 milhões de vezes aos números de 1992”.[22]
Um turbilhão de acontecer das coisas.
Tudo longe do tradicional.
Há hoje vários tipos de economia. E todas extremamente pujantes.
Economia compartilhada/colaborativa fazendo com que a lógica do descarte seja afetada. Um bom exemplo disso é o Airbnb. Existem ainda “pessoas compartilhando não só apartamento, como música, livros, carros, roupas… literalmente tudo! Um exemplo disso é o site de empréstimos de vizinhos, o Tem açúcar? da Camila (…). seu negócio é parte do princípio de que não utilizamos com frequência uma série de coisas que compramos (ou ganhamos no chá de panela), logo é mais inteligente (econômico e sustentável) compartilhar com quem precisa. É só fazer o cadastro no site e usar a ferramenta de busca para procurar o que precisa. O sistema pergunta a pessoas que moram na vizinhança quem pode ajudar, e quando alguém se manifesta o site coloca os dois em contato”[23].
Economia colaborativa. Ações de crowdfunding, para dividir custos e materializar projetos. Ações colaborativas de crowdsoursing, que se caracteriza pela obtenção de serviços, ideia e conteúdo me diante a contribuição de um grande grupo de pessoas. “o artigo que publicou a descoberta do bóson de Higgs, por exemplo, tinha mais de 5 mil colaboradores[24].
Economia solidária, economia da dádiva, baseada na generosidade e na reciprocidade, que tem como objetivo contribuir para a sobrevivência, o fortalecimento e a prosperidade de uma comunidade. Economia cocriativa. Economia transparente. Economia distributiva, que tem como grande exemplo o Blockchain.
Enfim, como nexialista, o profissional tem de ter a capacidade de estabelecer novos padrões cognitivos, em substituição ao pensamento linear e condicionado, que gera soluções padronizadas, por meio de uma visão sistêmica e sinérgica, criadora de ideias integradoras e de múltipla abordagem. Tem de ter a capacidade de criar ou encontrar conexões entre pontos extremos ou adversos do conjunto de conhecimentos que vai além da fatia da sua área de atuação, mesmo que nem sempre conheça as respostas, mas saberá onde buscá-las, por meio da conexão de pessoas e conhecimentos, muitos, aliás e de início, aparentemente não relacionados. Deve, sempre, buscar (e encontrar) nexo na profusão de informações que nos são disponibilizadas.
Estar Continuar/reconhecer vivo/a dentro do ecossistema jurídico que está em constante mutação. Esse o nosso desafio, enquanto profissionais do Direito. Por isso, desconstruir positivamente racionais de solução que tínhamos, com a utilização de novos instrumentos coletivos-não- fatiados pode e deve ser uma grande oportunidade para enfrentar esse novo. Como bem resumiu Clemente Nobrega: “nada há de novo nisso. Enquanto a taxa de mudança foi ‘razoável’, enquanto as coisas evoluíam em um ritmo em que as pessoas normais conseguiam acompanhar, não era tão difícil ser competente. Hoje, a necessidade de se desconstruir o que se construiu é contínua. A necessidade de se miudar o que ‘sempre deu certo” é o imperativo maior. Nossas construções têm de ser mutantes por princípio. Elas têm de ser feitas não ‘para durar’, mas para mudar”[25].
Bem-vindos/as, nexialistas, aos desafios que nos impõem o novo!
Bibliografia
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[1] Advogado. Mestre e Doutor em Direito do Trabalho pela PUC São Paulo. Titular da cadeira 48 da Academia Brasileira de Direito do Trabalho e titular da cadeira 28 da Academia Paulista de Direito do Trabalho.
[2] KARNAL, Leandro. Criticar no Brasil. Jornal O Estado de S. Paulo, 25 de junho de 2023.
[3] RIES, Eric. A startup enxuta: como os empreendedores atuais utilizam a inovação contínua para criar empresas extremamente bem-sucedidas. Tradução Texto Editores. São Paulo: Le Ya, 2012.
[4] LÉVY, Pierre. A inteligência coletiva. Tradução Luiz Paulo Rouanet. São Paulo: Folha de São Paulo, 2015, pág. 13.
[5] VUCA: O conceito de Mundo VUCA foi criado na década de 1990 (cenário pós-guerra-fria). Deriva do acrônico (em inglês) formado pelas palavras: Volatility (Volatilidade), Uncertainty (Incerteza), Complexity (Compexidade) e Ambiquity (Ambiguidade).
[6] Disponível em: https://www.ieepeducacao.com.br/mundo-bani/. Acessado em 27/06/2023, às 19:36.
[7] GUERIOS, Maria Beatriz. Disponível em: https://mariabeatrizguerios.com.br/2022/07/06/o-que-e-visao-de-tunel/#:~:text=A%20vis%C3%A3o%20de%20t%C3%BAnel%20%C3%A9,dificuldade%20para%20enxergar%20nas%20laterais. Acessado em 28/06/2023, às 9:45.
[8] KARNAL, Leandro. Criticar no Brasil. Jornal O Estado de S. Paulo, 25 de junho de 2023.
[9] Expressão de Tiago Mattos.
[10] Ob. Cit. pag. 53.
[11] VRAKKING, Ben. VEEN, Wim. Homo zappiens, educando na era digital. Porto Alegre: Artmed, 2009, pag. 27.
[12] DE LIMA. João Gabriel. Da turma de Marx à turma de Mark. Jornal O Estado de São Paulo, 14 de novembro de 2020.
[13]CARDOSO, Rafael. Design para um mundo complexo. Ubu, São Paulo: 2016, p. 111.
[14] Ob. Cit., p. 91-92.
[15] OLIVEIRA, Rafael Santos de. DO ANALÓGICO AO DIGITAL: UM OLHAR SOBRE O DIREITO À INFORMAÇÃO NA SOCIEDADE EM REDE A PARTIR DA TRANSIÇÃO TECNOLÓGICA DA TV BRASILEIRA. Disponível em: https://www.researchgate.net/profile/Rafael-Oliveira-44/publication/323459301_DO_ANALOGICO_AO_DIGITAL_UM_OLHAR_SOBRE_O_DIREITO_A_INFORMACAO_NA_SOCIEDADE_EM_REDE_A_PARTIR_DA_TRANSICAO_TECNOLOGICA_DA_TV_BRASILEIRA/links/5f03347545851550508dcc12/DO-ANALOGICO-AO-DIGITAL-UM-OLHAR-SOBRE-O-DIREITO-A-INFORMACAO-NA-SOCIEDADE-EM-REDE-A-PARTIR-DA-TRANSICAO-TECNOLOGICA-DA-TV-BRASILEIRA.pdf?origin=publication_detail. Acessado em: 09/08/2022, às 23:14.
[16] Apud ROBERTSON, Brian J. HOLACRACIA o novo sistema de gestão que propõe o fim da hierarquia. Benviará. Tradução Cristina Sant’Anna. SOMOS/Saraiva, São Paulo, 1ª edição, 2016, pag. 77.
[17] Apud DEMARCHI, Ana Paula Perfetto. Gestão estratégica de design com a abordagem de Design Thinking: Proposta de um sistema de produção de conhecimento. 2011. 302f. Tese (Programa de pós-graduação stricto sensu em Engenharia e Gestão do Conhecimento) – Universidade Federal de Santa Catarina, Santa Catarina.
[18] NOVAES, Adalto. Mundos possíveis. Dentro da obra por ele organizada. Mutações. O Futuro não é mais o que era. São Pailo: Edições SESC SP, 2013, pag. 12.
[19] Disponível em: https://www.onews.com.br/sem-categoria/a-arte-e-a-ciencia-de-conectar-diferentes-saberes-voce-conhece-o-nexialismo/. Acessado em 28/06/2023.
[20] Idem.
[21] CHAISON, Eric J. Cosmic Evolution, Cambridge, MA: Harvard University Press, 2001.
[22] Cisco Visual Networking, Index: Forest and Trends, 2017-2022, White paper, 27 de fevereiro de 2019. Disponível em: https://www.cisco.com/c/en/us/solutions/collateral/service-provider/visual-network-index-vni/whitw-paper-c11-741490.html
[23] CARVALHAL, André. Viva o fim: almanaque de um novo mundo. 1ª edição. São Paulo: Paralela, 2018, pag. 278.
[24] HAMEL, Gary e ZANINI, Michele. Humanocracia: criando organizações tão incríveis quanto as pessoas que as formam. Tradução Melissa Medeiros. Rio de Janeiro: Alta Books, 20212. Pag. 07.
[25] NOBREGA, Clemente. Em busca da empresa quântica. Ediouro: São Paulo. 1998.