Por Guilherme Guimarães Feliciano
No último dia 4/3, o Presidente da República – filiado a um partido trabalhista – encaminhou ao Congresso Nacional o PLP 12/2024, a fim de regular “a relação de trabalho intermediado por empresas operadoras de aplicativos de transporte remunerado privado individual de passageiros em veículos automotores de quatro rodas”, como ainda para estabelecer “mecanismos de inclusão previdenciária e outros direitos para melhoria das condições de trabalho”. Em um campo social hoje relegado, na prática, a uma certa anomia –conquanto já haja, a rigor, legislação social apta a regê-lo, ao menos no mais fundamental –, o Governo pretendeu estatuir alguma ordem, de modo a “harmonizar a inovação tecnológica com a proteção de direitos laborais”. O curioso é que, para isso, aprofundará o caos, em uma inaudito fenômeno de entropia normativa.
Talvez o preceito mais “útil” do projeto seja aquele do art. 10, a prever que, para fins previdenciários, os motoristas plataformizados são segurados contribuintes individuais (i.e., segurados obrigatórios do INSS) e sua contribuição será calculada à base de 7,5% sobre o salário-de-contribuição (corresponde a 25% do valor bruto auferido no mês), enquanto que as respectivas empresas operadoras de aplicativos de transporte contribuirão com a alíquota de 20% sobre essa mesma base, além de reter o que será revertido, por parte dos motoristas, à previdência. A rigor, os motoristas de aplicativos – assim como todos os demais trabalhadores plataformizados (entregadores, p. ex.) – já deveriam recolher como segurados contribuintes individuais, à vista do que dispõe o art. 12, V, “g” e “h”, da Lei 8.212/91; e, bem assim, as empresas de aplicativos já deveriam fazer as respectivas retenções, mercê do art. 4º da Lei 10.666/2003. Agora, porém, o projeto de lei termina por retirar desses obreiros a possibilidade de recolherem como microempreendedores individuais (caso em que a alíquota seria menor, de 5% sobre o salário mínimo).
É no aspecto trabalhista, porém, que o projeto torna-se draconiano. É ruim na perspectiva da transparência de dados, na perspectiva sindical, na perspectiva remuneratória, na perspectiva da saúde e segurança e até mesmo nos fundamentos dogmáticos. Fiquemos apenas com os três últimos aspectos.
O projeto cria um piso remuneratório de R$ 32,10/h, composto por R$ 8,03 de retribuição pelos serviços e de R$ 24,07 a título de ressarcimento de custos. Parece um avanço, mas não é. Suponha-se que o motorista conduza por 1h a 120km/h (rodovia). Se o veículo faz 15 km/l (um Ford Fusion 2.0, p. ex.), com a gasolina a R$ 5,74/l (preço médio), esse motorista partirá de um custo de 120/15 x 5,74 = R$ 45,92/h (afora depreciação, manutenção, celular, seguro, alimentação etc.). Noutras palavras, o trabalhador estará pagando para trabalhar, sem qualquer garantia do salário-mínimo hora. As empresas de aplicativo obviamente poderão pagar mais do que esses R$ 32,10/h (e geralmente o farão, como já fazem hoje); mas o fato é que a lei as autorizará a inclusive reduzir a retribuição do motorista, até esse patamar, sempre que o ajuste seja necessário para preservar ou majorar a sua margem de lucros. Voltaremos ao século XVIII.
Quanto à jornada, o art. 3º, §2º, do PLP dispõe que o período máximo de conexão do trabalhador a uma mesma plataforma não poderá ultrapassar doze horas diárias. Essa é uma das maiores distorções do projeto, agredindo diretamente o limite humanitário estabelecido pelo art. 7º, XIII, da Constituição (8 horas diárias e 44 horas semanais para qualquer trabalhador). Ademais, não se asseguram descansos remunerados no curso da semana ou do mês, o que levará os motoristas a prorrogarem suas jornadas, para além das 12h/dias, em outras plataformas a que estejam vinculados. Nada mais inapropriado. Vale observar que, se o motorista dedicar oito horas aos seus negócios domésticos, aos estudos e/ou à família e outras 12h ao trabalho nos aplicativos, vai dormir cerca de quatro horas/dia; e, segundo estudos diversos, dirigir com menos de 5 horas de sono é tão arriscado quanto conduzir embriagado. Seremos nós e eles nessas estradas… Aliás, não por outra razão, o art. 235-C da CLT, na redação da Lei 13.103/2015, dispõe que a duração da jornada diária do motorista celetista é de oito horas, admitindo-se excepcionalmente o regime 12×36, apenas mediante negociação coletiva com o sindicato; e não se tolera, para o motorista profissional com passageiros, a condução por mais de cinco horas ininterruptas (art. 67-C do Código de Trânsito). Por que seria diferente para motoristas “autônomos”?
Por fim, o PLC comete, já à partida (art. 3º), o seu pecado capital: pretende afastar a possibilidade de reconhecimento do vínculo empregatício entre o motorista e a empresa de aplicativo. Isso depois de declarar textualmente a onerosidade (“transporte remunerado privado individual”) e a pessoalidade (“cadastro pessoal e intransferível”) e insinuar a subordinação, como se vê no art. 5º, I a V: normas e medidas para manter a qualidade dos serviços (poder de modular), sistemas de acompanhamento em tempo real dos serviços (poder de fiscalizar) e direito de suspender, bloquear e excluir o motorista (poder de punir), além do direito de torná-lo livremente “avaliável” pelo aplicativo (enquanto aos empregados em geral se garante o direito de não ter anotações desabonadoras na CTPS: art. 29, §4º, CLT). A “exclusividade”, registre-se, jamais foi requisito da relação de emprego (art. 3º, §1º, I, do PLP). E, por outro lado, a subordinação pelo algoritmo já tem previsão legal, a teor do art. 6º, §1º, da CLT (“Os meios telemáticos e informatizados de comando, controle e supervisão se equiparam, para fins de subordinação jurídica, aos meios pessoais e diretos de comando, controle e supervisão do trabalho alheio”). Seria o caso, pois, de aplicar a CLT, desde que verificada a subordinação do art. 6º, §1º, da CLT (a depender da arquitetura algorítmica da plataforma) e a habitualidade dos serviços concretamente prestados “por intermédio” da empresa (na verdade, para ela: tais empresas são indiscutivelmente empresas prestadoras de serviços de transporte). Isso porque, uma vez presentes todos os requisitos dos artigos 2º e 3º da CLT, a lei não poderia simplesmente “afastar” o vínculo de emprego (i.e., a CLT), sob pena de agredir o regime constitucional de proteção do trabalho subordinado, a igualdade formal e a própria dignidade da pessoa do trabalhador. O que o governo Lula pratica, na verdade, é a mesma “engenharia jurídica” tentada pelo governo Itamar Franco, em 1994, com o malsinado parágrafo único do art. 442 da CLT (hoje, §1º), quando pretendeu afastar o vínculo de emprego entre trabalhadores “cooperados” e cooperativas ou tomadores de serviços. À altura, a Justiça do Trabalho soube arrostar as fraudes, com base no art. 9º da CLT, e varreu do território nacional as “cooperativas de mão-de-obra” que, ao argumento de introduzir uma inovadora “forma contratual”, apenas mercadejavam força de trabalho pelo menor preço, ao arrepio da máxima primordial da declaração referente aos fins e objetivos da Organização Internacional do Trabalho (1944): trabalho não é mercadoria.
Hoje, porém, à vista da jurisprudência restritiva que tem se desenhado no STF a respeito da matéria (p. ex., Rcl 59795/MG), os tribunais trabalhistas conseguirão cumprir novamente o seu papel constitucional, caso a caso, interpretando sistematicamente a provável nova lei e a CLT em vigor? Eis a grande questão social da primeira metade do século XX, ao menos em terra brasilis.