O Supremo e o Uber

08/02/2024

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Por Douglas Alencar Rodrigues

Considerado um dos mais influentes escritores da ficção científica no século 20, Isaac Assimov foi responsável por prever cenários futuros que estão se tornando realidade. Advertia que as nossas “premissas” são as “janelas para o mundo”, razão pela qual precisamos “limpá-las” periodicamente, pois, se assim não fizermos, “a luz não entrará” e estaremos condenados à obsolescência e ao atraso.

A adoção de novos modelos de organização produtiva e o desenvolvimento exponencial da inteligência artificial, agora também generativa, com o uso cada vez mais intenso de máquinas e aplicativos que estão suprimindo ou transformando postos de trabalho, trazem sérios questionamentos de ordem econômica e social e grandes desafios para a regulação jurídica adequada dessas novas realidades.

A imprensa portuguesa noticia que a Justiça do Trabalho daquele país decidiu, pela primeira vez, o tema da natureza jurídica da relação entre trabalhadores e empresas que operam aplicativos de transporte de passageiros. Em Portugal foi editada a lei nº 45, em 2018, que regulou amplamente a atividade, estabelecendo a presunção de vínculo empregatício nos casos em que demonstrado o poder empresarial de fixação do local de trabalho e do horário, a propriedade empresarial dos instrumentos de trabalho, o pagamento periódico ao “estafeta” ou o exercício de atividade diretiva ou de chefia pelo trabalhador.

No Brasil, é conhecido o grave quadro de insegurança jurídica que envolve os trabalhadores por aplicativos, inclusive objeto de rumoroso julgamento em ação civil pública, com a condenação de R$ 1 bilhão por danos morais coletivos a empresa desse setor. São ainda inúmeras as ações judiciais em curso, havendo reiteradas decisões de ministros do Supremo Tribunal Federal afastando o vínculo de emprego nesses casos.

Como órgão de cúpula do sistema judiciário nacional, ao STF cabe fixar o significado da ordem jurídica, que deve ser compreendida a partir dos princípios e regras da Constituição. Suas decisões devem ser seguidas pelos demais juízes e tribunais, sem o que haveria indesejado quadro de anarquia jurídica, com prejuízos sérios para o conjunto da sociedade.

A legislação trabalhista brasileira, pensada para outro contexto socioeconômico, definiu a figura do empregado a partir dos critérios de tempo e local de trabalho, remuneração e subordinação, também presumindo a integração permanente do trabalhador à empresa. A eventualidade e a descontinuidade da prestação de serviços, assim como a ausência de poder de comando ou direção empresarial, descaracterizam o contrato de trabalho.

Quanto ao trabalho realizado por meio telemático e informatizado, o vínculo de emprego pressupõe a presença de comando, controle e supervisão empresariais, o que não se configura na relação jurídica mediada por plataformas, em que o comando final está nas mãos dos trabalhadores, livres que são para escolher os momentos de trabalho e as plataformas, concorrentes, que utilizarão.

Para além dos argumentos favoráveis e contrários ao pacto de emprego, enfatizando a ampla liberdade com que o serviço é prestado e realçando a presença de forte “controle algoritmo” da vida funcional dos trabalhadores, o Congresso Nacional editou em 2018 a lei 13.640, tratando de aspectos diversos da Lei de Mobilidade Urbana. Definiu nessa ocasião que os trabalhadores que usam aplicativos são considerados contribuintes individuais perante a Previdência Social, o que afasta a possibilidade de que sejam tratados, paradoxalmente, como empregados para efeitos trabalhistas.

Apesar dos recentes esforços capitaneados pelo ministro do Trabalho e Emprego, Luiz Marinho, a palavra final parece estar mesmo a cargo do Supremo Tribunal Federal, que pode apreciar a partir desta quinta-feira (8) o julgamento da questão. É chegada, portanto, a hora de “limpar as janelas para o mundo”, reconhecendo a necessidade de edição da legislação adequada ao novo modelo de prestação de serviços por aplicativos, com padrões de proteção laboral, securitária e previdenciária.

Embora a iminente decisão do Supremo deva encerrar um capítulo importante dessa disputa, ao Congresso Nacional restará o exame criterioso dessa realidade e a edição do marco legal adequado.

Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião da Academia

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